quinta-feira, 17 de junho de 2010

aurora- Tomás Fernandes

Quando me levanto e vou para a sala tudo é estranho, distante e pouco familiar. Volto logo com água da cozinha friamente branca, para molhar a boca cinza, seca dos cigarros que dão o gosto esfumaçado de meu quarto; apenas para acender outro e olhar mais uma aurora que chega depois de uma noite insone de rolar de lado para o outro e depois o outro e o outro, em meio a algum semidelírio de quase sonhos numa noite que pelas frestas da janela era tão escura, sem estrelas e cada vez mais densa até atingir um ponto em que lentamente se esfacela como um quadro que alguém vai raspando a tinta até transparecer um sol vermelho entre as nuvens marrons de poeira(porque agora só há horizontes de poeira).
Sento-me na cama e penso nos corpos que deitaram nela, rolando ou dormindo e acabo pensando em um específico por deslize e por isso acabo procurando as marcas deixadas por ele, mas acabo lembrando que esse corpo é algo como uma pessoa e as enormes marcas que deixou há muito desapareceram daqui. Ainda assim agora sinto como a sua presença nesse lugar que me é tão familiar(quarto esfumaçado e sujo, mas meu quarto esfumaçado e sujo), que contém tantas outras histórias que não me lembro(e algumas que nem sei, mas ai o quarto nem era meu); e se incorpora em todos os cantos: na cama, na poltrona, nos livros, nos cds, nos quadros, no telefone, nas paredes...O espaço que era de dois volta a ser para depois voltar a ser de um, até que outra pessoa e não corpo tome de novo esse lugar, tirando os chinelos e se aconchegando nesse espaço entre meus braços, para agüentarmos o frio cortante de mais uma noite escura que teima em passar pelas frestas da minha janela.
Mais uma vez voltarei à sala para tomar café e fingir que não dá para ouvir os ônibus e carros e trens e metrôs passando e levando a gente pro trabalho, enquanto se insinua mais um dia pela luz vermelha que entra pelas janelas e a gente tenta esquecer tudo isso e fingir que dá para passar o resto dos dias na cama vendo o sol nascer e morrer levando e trazendo o frio cortante de noite após noite, mas a questão toda é que já estamos na sala e enquanto tentamos falar disso tudo os sons de buzina vão nos cortando e os ponteiros dos relógios até que os dois saiam, dêem um beijo e um dos dois diga até de noite e o outro responda até de noite.
Mas voltam, mesmo que de outra forma; porque as pessoas como os dias têm formas diferentes, mas sempre voltam.

3 comentários: