quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Um Poema Karamazoviano - Bruno Santana


a mágica absurda do escuro
o brilho dentrífico
a pele translúcida
o riso de escárnio

o Gato passa correndo.

a aura não está adequada
o sentido está perturbado
a roupa está rasgada
o sangue está sombrio

o Gato volta.

o sangue é forte
a decisão é sombria
a escolha é firme
a noite é companheira

o Gato espreita.

o olho torto
o bigode
a encruzilhada
a angústia

o Gato contabiliza.

o pilão
a pistola
o hábito
a cruz

o Gato pára.

Golpe
Espasmo
Tombo
Riso

Riso
Riso
Riso
Riso

o Gato delira:

" o pai,
o pai,
o pai,
o próprio pai!

o pai do sangue morreu!

Dmitri não é assassino
Aliócha é o parricida! "

" Quem diria Aliócha!
O que diria seu Stárietz !? "

firma Behemoth e
enrola o bigode.

acende
e passa ao novo herói:

o Primeiro Cigarro Ateu.

Ivan está em júbilo
Dmitri está em liberdade



O demônio está desesperado.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

A vista é melhor lá do alto- Rolando Vezzoni

-Sonhei que era aleijado...
Podia sentir até a espinha rachada...
Dorme?
  Ela ainda dormia,
foi de ladinho pra dar bom dia.
  Tremeu e bocejou:
 “que horas são?”.
-tanto faz, o mundo já acabou...
-Faz tempo? Puxa, eu até já sabia...
o que fazer agora que o mundo acabou?
  Brinca. depois o ventilador.
  Dedos correm pelos cabelos, então um fio comprido cai devagar no lençol amassado.
-Talvez seja erro, babaquice:
como acabar um mundo com o ventilador ligado?
-Sobrou latinha do lado da cama, umas duas...
  Sorriu abobado, ela pesca a cerveja quente.
-Quando acabar o mundo, quero cerveja gelada.
-Dorme cheiroso, acorda suado e reclamando.
-sempre assim?
-sempre.
-Talvez seja erro, babaquice:
como acabar um mundo levando cerveja gelada?
-Você não volta... Tenho pena.
-é tudo cena minha... Juro que to quase aqui...
-promete?
-Não, quando deus morreu levou o super-homem junto.
  Derruba um pouco da latinha, molhando o lençol.
-li que pra aprender a voar, é só errar o chão... Coisa de Douglas Adams.
-Depois de voar o mundo pode acabar... Vai ficar tudo bem,
Sabe? Voou.
Riu baixo, linda e confusa. Daí replica:
-e o que fazer até lá?
-ficar na cama, tomando cerveja quente... Pelados, de preferência... Quando o mundo ta acabando, ele fica muito quente... Calor maldito.
-gosto de você suado e reclamando... Mas tenho de ir.
-Pode ir... a vista é melhor lá do alto.
  Abriu a janela devagarzinho, olhando toda calma e foi embora: saiu nua, costas lindas... E foi voando
-Tudo pronto para o fim do mundo.
  Riu.

"pop" da garrafa num dia saudável- Rolando Vezzoni e Bruno Santana

Lá no bar, sempre no bar...

- Cara, eu tava trocando ideia com uma amiga minha outro dia, que faz medicina e tá encarando uma crise foda!
- Contaí!
- A coisa é que ela simplesmente não se conforma com a ideia de que pão vira banha, banha queima no corpo e vira energia ... mandaí o isqueiro garotão!- Lançou por cima da mesa molhada, estava bastante sol, o que o fez se ofuscar fazendo a máquina do fogo parar na dobra da camiseta.
- Pode crer, a coisa toda é bem mágica... manja essa breja? Ela é uma porra dum líquido, formado por grãos e fungos, ela vai pro teu cérebro e te deixa feliz, vai pro teu bucho e vira açúcar que vira energia!
- Fora que te faz mijar pra caralho e desidratar! É sensacional!
- É. .. falando nisso, uma mina me falou que agente não sai daqui: “ Meeeu, voceis ficão no bar bebendo e falando de livro o tempo todo, vai fazer alguma coisa saudável!”
- HAhahahaha...cof!- relaxou - mas ela meio que pode estar certa... bem que agente podia fazer alguma coisa saudável... falam que até é importante pra viver bem e essa coisa toda.
- Podemos combinar de jogar tênis nos finais de semana... O Woody fazia isso. Os caras do Pink Floyd jogavam squash.
- E eu jogava tênis. Talvez ainda tenha raquete, mas... na real, prefiro tomar umas; fim de semana é pra isso.
- Sem dúvida; isso é foda. Mas pense numa coisa: "Garotas com vestidinhos de tenista". Várias Sharapovas, se é que você me entende...- disse gesticulando peitos - Mais uma chefe!
“ Tá a caminho ”
- Isso é verdade, por aqui é comum jogar tênis... é masturbação burguesa. A burguesia daqui vive disso.
- Sim, de onde venho é a mesma merda! -Chega a garrafa loura suando, “pop” “tinck” “clack”, percussão etílica clássica de todo barman.
- A gente pode andar com os cachorros!
-Pode crer! O meu é um puta imã de mulher!- pára e dá a talagada- Ele fica lá com o olhar debiloide  e ela vem: “ Aaaaiiii! Que lindo! Como é seu nome!? Hem!? Ta passianu tá?” -*burp*, é um bom plano! Colar na praça, ver umas MILFS correndo... nada mal...
- É! É só andar um pouco, aí a gente senta, acende um cigarro... já levamos um caderno e vemos se dá pra escrever qualquer coisa!
- Boooa! Eu levo um cooler com umas brejas pra irmos bebericando... aí a gente dá aquele time bom, curte o sol da tarde!
- Tudo em nome da saúde, certo? Vida saudável é questão de sobrevivência! - bate as cinzas numa poça da mesa e as observa navegando até cair na cadeira vazia.
- Sim!- pega o maço de cigarros na mesa- Cê tá certo!- acende- Já to me sentindo mais saudável !
- É! Sair dessa vida de bar pra variar um pouco!
- Certeza! Tem quem vive sobrevivendo...- boceja- e quem sobrevive vivendo!
- Cara! Falando nisso... já leu a “ Idade da razão”?
- Ooooopa, claro! O Sartre é picudo! Ainda mais naquela hora da faca do Boris que o Mathieu...
- Ahh cara, pra mim o Sartre só escreve tão bem porque a porra do país dele é frio e vinho não dá pra beber todo dia. Vinho dá uma ressaca filha da puta. Se fosse bom de beber breja ele só escreveria sacanagem.
-Cara, ele era um famoso pinguço! Acho que ele escrevia tão bem por que não tomava banho... pelo menos é o que a lenda diz!
- Faz sentido. – falou enquanto sacolejava a cerveja vazia – Essa aqui acabou. Outra!?- Claro.“ Chefia, manda mais uma, mas manda gelada heim!? ”

domingo, 28 de outubro de 2012

Rocha peixe, barco bode -Rolando Vezzoni


    Morava numa casa no meio do nada. Casa concreta, substantivo concreto, concretada ao solo e concretizada como algo... certamente um casa. Já o nada é um tanto mais complicado pelo fato de ser alguma coisa, e qualquer nada que seja alguma coisa pode deixar a explicação toda mais atrapalhada.
    O nada consistia numa espécie de movimento rotativo que anoitecia e amanhecia irritantemente todas as manhãs e entardeceres, a pintura era azul, com eventuais borrões brancos, o que tornava todo o nada algo minimamente dinâmico.
     E essa casa abraçada pelo nada era um tanto comum, aliás, de estranho só a assinatura "barco", sim, "barco" era como se chamava, havia uma placa na frente da casa apontado-a dessa forma. Por que? Bom, talvez porque ela quer navegar, Fernandinho dizia que navegar é preciso.
    Naquela terra qualquer chão é estrada, e convenientemente, tem chão pra todo o lado dali, só pra lembrar que estar na estrada é inevitável, e onde tem estrada, tem caminho... e se todo caminho vai pra Roma, justíssimo trombar em trombas de transeuntes eventuais.
    A coisa é que a casa concreta pretende coisas, o que é um caminho abstrato para uma casa comum pensar a respeito, em razão de que a principio as casas não pensam, elas estão lá, pessoas vem, passam e vão e voltam... mas não ficam, casas tem espaço guardado, mas não correm atras, são concretadas, seria como pedir para um cego olhar aquela bunda, pro surdo escutar aquele som e pro aleijado levantar pruma grávida sentar no lugar dele no busão...
    E sempre foi boa com despedidas como havia de ser, e tudo ia na marcha lenta irritante de amanheceres e boas noites, até um dia que choveu, não dava para saber exatamente se a chuva partia do chão ou do céu, eram cordões gigantes e transparentes, aparentemente molhados... e assim foi por algum tempo, mas não sabe-se quanto tempo, pois o relógio morreu afogado, e se fosse para estimar, soaria por demais bíblico, mas pode ser dito que o suficiente para a casa perceber que não era e jamais seria um barco, o barco boiaria e sairia dali.
   Mas o nada todo virou alguma coisa, e como havia de ser, a casa estava submersa nessa alguma coisa...
Não navegaria, Fernandinho se enganara, um barco boia... agora, um submarino? um submarino afunda, e o destino faz da rocha um peixe e do barco um bode.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

(sem título)- Caroline Bellangero


você disse que viria qualquer dia desses. disse que chegaria aqui em casa metendo o pé na porta e me pedindo para ficar, que ia me segurar pelos joelhos e eu não teria como sair dali. você olharia bem dentro da minha cara e eu ficaria assustada.

depois disso teria festa, toda a gente aqui em casa e tudo de ruim indo para longe. você desfilaria comigo e seu corpo só aquietaria no meu.

teria ligação no meio da noite com a voz amansada pela madrugada, você disse. eu teria que fazer esforço para te escutar, de tão baixo que você falava, e não escutaria nada além da sua presença.

fiquei esperando você me arrastar pelo cabelo e dizer que me amava. eu te arranharia inteiro. o rosto, o corpo, tudo. sangraria um pouco e eu lamberia. você ia gritar, porque não sabia mais o que fazer. jogado ali na sala, dentro de mim, segurando-me pelo cabelo, cheio de sangue.

você diria mais uma vez que me amava antes de ir embora.

e toda a vez que a porta fechasse atrás das suas costas, eu choraria. porque nada faria sentido fora de nós.

mas você voltava, voltava com banda tocando na minha janela e uma garrafa quase vazia de baixo do braço. eu pegaria a garrafa e você me chamaria para dançar.

nós dançaríamos a noite toda e eu não sentiria mais nenhuma dor.

qualquer dia desses, você disse.

metendo o pé na porta, você disse.

falando que me ama e me pedindo para ficar.

Em tempos de bichos escrotos (parte 2)- Rolando Vezzoni


Jazia prostrado enquanto o Peralta pescava, pulava, ria, bebia e falava com um grupo de desconhecidos animados, rompeu a ausência de pensamentos concretos que durava mais de duas horas inferindo: “Peralta é um bom apelido”
Estava extremamente quente, e o peixeiro era potencialmente o lugar mais fedido que já havia encontrado pela frente, tinham umas sete pessoas quase tão mal vestidas quanto ele, que estava com chinelos de hospital, calça Levis e descabelado, seus óculos escuros tinham as lentes tão sujas que até tornava o ambiente mais interessante... Talvez mais aceitável.
Repentinamente:
-Porra garotão! Olha só quem ta aqui! O Serguei!-Disse Peralta muito peralta.
-Que Serguei?
-Aquele maluco! O que comeu a Janis Joplin!
-Que apareceu no Jô daqui uns 17 anos?
-é! Bacana né?
Respira fundo, limpa o nariz e torna o olhar.
-Não! Não é bacana porra nenhuma! Como eu vim parar em 1989? Como foram meus últimos meses? E me explica, por favor, a razão de estarmos fugindo pela porra do país?! É o que isso?
-Pô, sei lá, vai ver voltar no tempo fudeu seu cérebro!
Depois de se encolher e roncar um pouco em desespero acende um cigarro e olha com profundo desespero para seu amigo que esbanjava um sorriso constante.
Diz:
- O desespero oscila, mas não passa...
Peralta olha confuso, depois boceja e coça a cabeça olhando para cima:
-então, a coisa toda é meio idiota... Foi um problema burocrático, aparentemente, o fato de não existirmos ainda, implica que somos ilegais por aqui...
-mas... Não importa muito... Pelo menos isso não é tão perigoso...
-ahhhhh... Então, tem outro problema. Foi mais ou menos assim: Eu sou fã de futebol e pá, então chegamos a conclusão que apostar em jogos que sabemos o resultado era uma boa, manja? Até aí tudo certo... Que nem naquele filme da banheira, manja? Mas o pessoal do bar ficou puto... Aí falaram com o PM que ajudava os caras, e tipo... Agora pensam que agente assaltou o bar lá... Aliás, não “assaltamos”, pois não teve violência, mas que “roubamos”... é mais ou menos isso...
-Quanto?
-uns 130 mil pau a dois meses, agora nem manjo quanto sobrou...
-e a super inflação?
-é dólar...
-isso é um problema...
-é nada, “tâmo” com uma grana da porra, temos uma fêmea que “existe” pra ajudar agente... e os anos 80 são bacanas!
-Não é bacana! Não é! É tipo o limbo, é uma década que já existe AIDS e não existe micro-shorts, o Brasil ta todo quebrado e agente ainda não nasceu, sê tem alguma idéia do tamanho da cagada que é isso? Hem?! E se agente romper a continuo espaço tempo, o que quer que seja isso? Ou sumir, ou alterar o futuro de forma estúpida?
-ei! Duas coisas cara! Duas coisas! Um, para de gritar assim, se num to ligado que é bom evitar parecer completamente louco num pesqueiro público?
Nosso herói não fala nada, apenas ri baixo e olha pro chão esperando o “dois”.
-E dois... O combinado é partir do pressuposto que tudo meio que já aconteceu e que no passado nós fomos existentes antes da nossa existência e por isso ta tudo certo e vai tudo se encaixar...
-quê?
-Ignorar e ver o que rola...
-ah.
-“eeeeeeeeeeuuuuuu ssoooooooooooou  piiiiiiiiscicodélicooo!!!”-interrompe Serguei.
Já estava começando a aceitar tudo aquilo, tenta engajar uma conversa.
-Opa, beleza?
-éééééé!
-Prazer conhecer... Você não é aquele cantor?
-Eu comi a Janis Joplin.
-Ah, sim...

 (continua)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

"Antropofodia"- Rolando Vezzoni

Foi enviado buscar os cigarros prá galera,
que tomava cerveja alemã...
Juntou 20 pilas de intera,
Tabaco brazuca pro pileque estrangeiro.
Chegou numa banca "terra brasilis"
-Olá! me vê um Marlboro?
-15 reau...
-15!? é feito de ouro?
-é importado.
-então me vê aquele maço azulado!
-15 reau...
-Porque?!
-é importado...
-então o mais barato por favor!
-é 15 reau!
-importado?
-a banca é chique!
-mas o nacional é melhor...
-tem trouxa que compra mais caro e pior!
-...
-tá, manda o mais forte pro tonto...
-aí é 20 reau!
-vô de 15 "reau"
-troco em bala?
-até mais ver-te!
-té minino!

"Tupi or not Tupi? that is the question" Oswald de Andrade

domingo, 14 de outubro de 2012

Em tempos de bichos escrotos (parte 1)- Rolando Vezzoni


   Era a quarta vez que o telefone roncava no criado mudo, e a quarta vez que o sono impedia-o de atender.
   “Atende aí porra!” disse uma voz doce abafada por um travesseiro, o que o deixou bastante feliz, é adorável acordar com uma voz dessas ao seu lado.
   “Uahhh!!!” Acordou e espreguiçou-se e olhou a sua volta tranquilamente por alguns segundos, só o suficiente até perceber que nunca havia estado naquele quarto antes, que não fazia idéia de que era tudo aquilo envolta dele e nem quem era a dona daquele conjunto maravilhoso de quadris, bunda, costa e coxa de voz doce e cara afundada no travesseiro ao seu lado.
   Levantou interrogativo e foi ao banheiro daquela suíte, no banheiro havia uma escova de dentes rosa e um verde, inferiu que a verde deveria ser a sua, junto com todas coisas que pareciam suas e estavam no banheiro.
   Fechou a porta em silêncio, estava completamente pelado, e de meias, enquanto urinava ficou pensando no que era pior, se era o fato de não fazer idéia do que estava acontecendo ou o fato de ele ter trepado de meia.
   “Eeeeiii! Eu sei que se num curte atender o telefone de manhã... mas é a quinta vez que ta tocando, deve ser o Peralta que ta te ligando, atende o cara antes que ele tenha um chilique!” mas uma vez lhe fala a voz doce, mostrando bastante intimidade... Como ela poderia saber que ele não gostava de atender o telefone, ou pior, que era o Peralta?
   Chacoalhou bem rápido, entrou e começou a procurar o celular que estava tocando, bastante constrangido, mas sem intenção nenhuma de escutar reclamações da musa sem rosto.
    “Alô!?” era um telefone ridículo, azul calcinha de discar rodando, daqueles que vendem em feiras cafonas de antiguidade “opa! To passando ai no hotel, desce logo cara, eu tive uma idéia brilhante! Se tem cigarro?” a voz era 100% estranha, mas devido a todo aquele contexto sentiu que era melhor seguir o fluxo do que acontecia até se situar melhor “ok, ok, mas eu não tenho cigarro não! Ta frio aí fora?” pergunta clássica de um bom paulistano “frio?! Hahahaha! Ooopa! Nevando! Hahahaha! Eu vou comprar uns maços, já vai se arrumando aí seu porra!” “mas...” o tal do Peralta desligou.
    “Que merda ta acontecendo aqui?” pensou, olhou o relógio era meio-dia, pegou o jornal do dia anterior que tava no chão do quarto... Era quarta feira de... “quê?” “não é possível” tornou o olhar pro celular “novembro” respirou fundo e riu alto “como assim novembro, isso ta errado, um porre de sexta feira de setembro e eu venho parar numa quarta feira de novembro?” ,”aliás, 20 de novembro” “mais de dois meses?” “ow, peraí, esse jornal tem mais de 20 anos!”
     Procurou algum cigarro no cômodo, e achou um pela metade num cinzeiro, acendeu, achou uma calça e um par de óculos escuros... Nenhuma camiseta. Só tinha umas cinco camisas de linho azul claro e de manga curta que ele nunca usaria na vida dele, se não num contexto como esse, no qual ele tinha que descer bem rápido pra encontrar o Peralta.
Se vestiu e calçou um chinelo de hospital que achou ali, e descabelado e com a barba por fazer desceu o lobby daquele hotel meio nojento que estava.
     “Ei! Patrão! bom dia! O senhor derrubou a carteira na escada ontem, ainda bem que eu encontrei!”.
    “ahh! Muito obrigado!” disse conferindo o conteúdo “ que notas são essas?” olhou pra cima e respirou fundo “Cruzeiros? Cruzados? Que porra é essa? Que porra é essa? Tem uns dólares aqui!? Que porra?!”
    Mais um momento surreal, o carioca que chamou ele de patrão parecia lhe conhecer bem, a quanto tempo estaria naquele lugar, alias, onde era aquele lugar?
Na porta era tudo meio normal, mas era um bairro que ele não conhecia “que calor do caralho!” inferiu.
    Uma buzina irritante de fusca cortou a harmonia, e lá de dentro desse fusca conversível e amarelo aparece um sujeito de cara simpática e sorridente, um negão magrelo de camisa dos titãs que parecia ter pulado diretamente dos anos 80, tinha ratos e baratas estampados, do álbum “bichos escrotos”, ridícula, porém era a melhor vestimenta para alguém aparecer nesse contexto insólito e confuso.
    “Peralta!?” chamou “Bacana a camisa” disse tentando parecer natural.
    “Hahahaha, Você sempre fala isso! Então big boy, entrai!”
    Esse sujeito era conhecido dele sim, trabalhava no mesmo lugar que ele, mas não lembrava ter conversado nenhuma vez.
    Entrou no fusca, tocava um jaz cafona, o Negão lhe estendeu o cigarro e disse:
    “Bom, já ta tarde, mas a galera já ta esperando agente no pesqueiro! Comprei umas varas vagabundas e é nui!”
    “Beleza... esse jazz combina com toda a atmosfera daqui, falaí?” Disse tentando descobrir onde estava.
    “Pena que é nosso ultimo dia aqui no Rio, amanhã vamos pra alguma cidade do interior, antes que achem agente!”
    “quê?!”


Continua...

sábado, 13 de outubro de 2012

naquela manhã: o gozo.- Caroline Bellangero


seu corpo contraíndo-se contra o meu e na minha cabeça tudo era toque. mão, língua, boca. e seus olhos. os meus fugindo de tudo que eu ignorava com força, os seus presentes, ali, cobrando uma resistência que nunca existiu.

uma. duas. três.

quis a quarta, a quinta e todas as outras.

quis você, todas as vezes.

e tive.

naquela manhã, a boca com gosto de café. você me acordando no chão, jogada entre cobertas e as coisas de ontem. a vontade jorrando e eu em você. você em mim. o gelado do piso e o quente da boca que acordava de uma noite que insistia em não virar dia.

quis meu corpo dentro do seu, e tive.

quis seu corpo dentro do meu, e tive.

quis você, todas as vezes.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Os olhos de Lúcia - Bruno Santana


Não sei se lúcido é de Lúcio
ou se Lúcia é a mais lúcida
mas os olhos da menina
são cor de explosão estelar.

Constelações nascendo
espalharam os espectros
do céu de chumbo
da alma de Lúcia.

Caminham em azul
para escorrer em amarelo
pingando gotas de vermelho
rastejando no laranja translúcido.

Os olhos de Lúcia!
A maré dos olhos de Lúcia
lúcidos olhos
lúcidos olhos derramados

derramados em mim.

A calma da menina louca
de razão esquizofrênica
de mundo fantástico
de Alice obstinada
de chapeleiro apaixonado
de gato risonho

Lúcia!
Que belos olhos menina!
Menina, posso ver seus olhos?
O azul e o amarelo me comovem Lúcia!
Menina, posso ver seus olhos?

Mais um pouco do azul!
                         Lúcia ...

Lúcia
Lúcia

escureceu

Lúcia.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

(sem título)- Rolando Vezzoni


e então garotão, que me diz?
-seus personagens são vagabundos natos!

Personagem meu é preguicento,
Filho de Macunaíma.
Boêmio e simbolista perfeito...
homem de coisa alguma.

Amante da tarde de sol e da noite.
do bar, do boteco ou qualquer casa de Baco.
Baco é muito clássico, então casa de cevada maltada e fermentada.

E ele também é delas, baixas médias ou altas...
Gosta de cócegas, pescocinho e coxas...
Acordar e ver costas desnudas e mamilos peraltas,
sorrisinho pra manhã gloriosa que começa lá pras onze horas.

 E é por isso meu amigo... que o senhor está certo!


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Sujeito-ponteiro e garoto-futuro- Rolando Vezzoni

Estava dormindo, não propriamente dormindo, mas quase lá. O banco da praça era confortável, era de tarde, o sol estava vermelho e o resto todo em tom pastel, agradabilíssimo. Era um daqueles momentos caricatos, tão confortáveis que vinham com trilha sonora, as quatro estações do Vivaldi ululavam em sua mente.
Um grito histérico quebrou tudo:
-Acorda aí garotão, existem "miliquinhentas" coisas para se fazer!
-hum? sim, entre elas cochilar...- disse fechando os olhos.
-Vamos, tenho pressa, tempo é dinheiro, dinheiro é tempo e eu não tenho nunca nenhum dos dois!
-Qual o seu problema? Tá com síndrome de Carrol? É cosplay de coelho?
-Não! é bem diferente, a menina seguia o coelho e o coelho seguia o ponteiro, eram outros tempos!
Não se deu ao trabalho de perguntar, apenas levantou o a sobrancelha interrogativo.
-Não entendeu? eu explico meu querido! mas de forma rápida e objetiva, exclamativa e corrida! Meu querido amigo, hoje em dia quando não se corre atrás do relógio, o relógio corre atrás de você!
-Do que você ta falando?
-Vem logo! - disse sorridente e alucinado o sujeito-ponteiro puxando-o - Vamos correndo que eu te faço entender, e farei de forma pragmática para otimizar o processo!
Começou a correr confuso e esperando a explicação, queria entender tudo aquilo, mas o ritmo frenético estava tornando tudo muito mais complicado.
-É bom correr, correr é saudável e ser saudável o faz durar mais, e ter mais energia para produzir muito mais em um período menor de tempo, e durando mais vai poder trabalhar muito mais tempo para aproveitar a velhice!
-Que? Do que você ta falando? Não vejo tranquilidade alguma nisso.
-Hahahahaha! Não to falando de tranquilidade! Se quer tranquilidade vá plantar cenouras ou fazer artesanato com senhoras viúvas!- Disse em tom jocoso, mas não muito jocoso por estar correndo e falando, o que tornava quase impossível utilizar qualquer tipo de entonação significativa para qualquer fim.- E que ritmo é esse? está sem ritmo! mais ritmo, frequência e estabilidade.
-"Calmaí"! Calma! Do que que você ta falando?
-Inconsciência ou morte meu querido! inconsciência ou morte! As novas máximas meu querido! O máximo que se pode fazer é ler o jornal, mas leia por cima e escolha seu time! manchete, manchete e escândalo, "tcha-rã"! Pronto sinta-se engajado, isso agora calce seus tênis de couro e reclame dos gados poluentes! Hahahahaha! Está acompanhando? hem? hem?
-eu... to... cansado..!- Disse ofegante e suado.
-Deus ajuda quem cedo madruga! é meu querido! Você acha que o Eike acorda 11 horas? talvez, eu já não sei isso!
-Onde... Estamos? eu... nunca... vim pra cá...
-Respira! Respira e olha pra frente, tanto faz onde estamos, o importante é para onde estamos indo! corrida e cabresto meu querido! corrida e cabresto!
-Que?! Mais devagar cara!
-Ei! Quem foi para o segundo turno? De que partido ele era? Quais suas promessas? Não sabe, não é mesmo? hahahaha! Você e seu momento, você e seu passado! Hoje é mais importante saber que está no segundo turno do que quem é o Ghandi, não sabia? Hem meu querido? Churchill já morreu, napoleão e césar e suseranos e vassalos, já foram as barricadas e o resto todo! Está acompanhando?
-Não!- puxa todo o ar que consegue ainda correndo, gotejando de suor- Não to com tempo pra pensar nisso! Tenho que respirar, descansar, sei lá!
-É isso! Você meu amigo, é jovem, e os jovens não existem agora, não sabia? os jovens são o FUTURO! nunca escutou isso meu querido?
-Eu não aguento mais!- disse parando aos poucos- vou sentar aqui, descansar e aproveitar a tarde!- Se conseguisse ignorar o sangue fervendo correndo, a fadiga física e mental.
-Hahahah, muito interessante meu querido, mas a tarde já passou faz tempo!
Olhou a sua volta.
-Tenho que continuar, meu querido! O tempo não para, não é mesmo?! hahahah! adeus!
E era noite, nada mais era vermelho e estava silencioso, só queria dormir, estava muito cansado para Vivaldi, muito cansando para qualquer coisa, e não tinha tarde nenhuma para se lembrar e havia acabado de entender, de forma pragmática e objetiva, o que o sujeito-ponteiro queria dizer.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A balada de Nicky e Tina - Bruno Santana


Seis da manhã
Seis da manhã e o filho da puta ainda não dormiu
Seis da manhã e seis balas estão aqui
Seis balas esperando
Seis balas tatuadas
Seis balas registradas.

Um maníaco
Um louco semi-deus
Um louco semi-deus me olhando de lá
Idiota
Panaca
Otário
O ateísmo elimina Deuses
e mete bala nas outras metades

Enfiar flecha em calcanhar é poético
Enviar balas é concreto.

Seis balas
Seis balas
Seis balas
Seis balas
Seis balas
Seis balas
O tambor está cheio
O tambor está girando
gira
gira
giroscópico
gira com endereço certo.

Não queria nada
Uma cerveja
Duas cervejas
Um cigarro
Meu cigarro
MEUS cigarros
Com meus cigarros ninguém mexe
Nos meus cigarros ninguém mexe.

Mulher bonita
Menina triste
Mendigo do semáforo
Monge asceta em crise de fé

Ninguém
Ninguém
Nos meus cigarros ninguém

Quem paga a merda sou eu
Quem separa as seis balas sou eu
Quem prepara o tambor sou eu
Quem encheu o tambor fui eu
O tambor está cheio

Seis balas
Seis balas
Seis balas
O tambor está cheio
O tambor está cheio
O tambor está cheio
e a matemática é correta
seis chances em seis
seis chances em seis
seis chances em seis
e o tambor resolverá todos os problemas.

O lustre é para isso
O trabalho de sábado à tarde é para isso
Trabalho para tambor cheio.

Não queria
Não faria
Todos tem seus motivos
Um cigarro é um motivo
Um cigarro é um motivo de seis minutos
Um cigarro são seis minutos de motivos
Seis minutos de motivos
Resolvidos em seis balas
Seis balas caligrafadas
Seis balas identificadas
Seis balas Tomahawks.

Não estava certo
Nunca tive razão
Mas é o meu cigarro
Mas é o meu isqueiro.
É o meu espaço
É o meu mundo
E no meu mundo são seis balas.
Cinco
Se algum afeto aparecer
Cinco
Se quiser colocar a sorte com você
Cinco
Se acordei e não precisei de café
Cinco
Para quem tem a matemática como protetora.

Uma
Duas
Três
Quatro
Cinco
Seis

Compre o seu cigarro.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Virgem de Asfalto - Bruno Santana


A pele do dedo descascando
a mulher de lá foi quem tirou
no delírio de rodoviária
na noite que escorria

pingando
latejando
sangrando

na rua de asfalto.

Na sujeira do banheiro público
da prefeitura do correio do bar
da correria
de uma pasta cheia de folhas

sujas
rasgadas
codificadas

na rua de asfalto.

Em um campo de jogos orientais
de velhos misteriosos
que encaram no caminho
da casa pra escola

bebendo
fumando
envelhecendo

na rua de asfalto.

Em delírio, encontrei a mulher de lá
de olhos misteriosos e oblíquos
piores que uma citação à Capitu:
olhos de víbora e fêmea facínora

violenta
ciumenta
inviolável

na rua de asfalto.

Ó! Céus do oriente!
perfumes sabores e temperos
e têmporas e tempos tão distantes,
trouxeste a mulher em teu seio.

Ó! Mãe de toda a terra!
Mãe de toda a natureza!
força embrionária.
Pais paz países
e de todo meu braço
esfolado
descascado
latejante

na rua de asfalto.

Ó! Virgem de sangue!
Ó! Virgem de asfalto!
dê a força
traga o peso
empurre

rache
rache
rache

a rua de asfalto.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Colhões de volta ao lar- Rolando Vezzoni

Ele e ela estavam sentados, era festa e barulho com pessoas correndo, pulando e rindo, havia também um sujeito dormindo enfiado na lareira, e uma garota vomitando pra fora do terraço, o cenário era plural, insano, esfumaçado e convidativo de forma assustadora .. bom, ele pensava assim, ela já queria acreditar que aquilo tudo era muito confortável... as mulheres de verdade não tem medo, não de coisas assim, e também não esquecem nada, ficam carregando a coisa toda para sempre, suportando de forma orgulhosa e perfumada, ela era assim... ele não, ele era um homem, e os homens são mais fracos, mas um de verdade é um fraco com capacidade de se jogar e se fuder deliberadamente, não participa das coisas, observa e interage, convive e segura todas as cicatrizes que puder para algum dia ficar calejado o suficiente e conseguir  alcançar uma dignidade inútil.
Acendendo seu cigarro cerimoniosamente olha para ela e ri de lado, sempre soube que ela tinha aquele sorriso, mas não parava pra pensar sobre isso a alguns anos, não lembrava bem, pois aceitava a noção de oportunidade perdida e de seguir em frente, "tudo isso fazia parte de tudo aquilo", pensou, e por mais arbitrária que seja essa definição, cabia perfeitamente no contexto cerebral mesclado de medo, tesão e porre, bastante porre.
-Puts... porre!- exclama sem perceber que a moça não havia seguido sua linha de raciocínio e não fazia ideia do que ele estava pensando.
-hum? do que você ta falando?- disse rindo animadamente- hahaha, você sempre ficou no seu mundo, pirado! hahah- depois encerra encostando a testa no peito dele ainda feliz.
É assim que funcionam as coisas funcionais, não importa o tempo e o contexto e o caralho.
-Ei, faz alguns anos que agente não se vê, fiquei feliz de ter vindo hoje- disse, e matou a cerveja.
-Siim! agente não saia dês daquela festa que seu amigo vomitou no seu pé!- sua voz sempre carregava algum entusiasmo natural, mas não intenso o suficiente pra chatear ou agradar profundamente.
-É, o sujeito atrapalhou a porra toda, agora que já faz anos nem tem problema falar...- tranquilamente dando uma tragada antes de continuar- você manja o que eu to falando...
Hesitando um pouco despreparada replica:
-Não consegui deixar claro que gostava de você, era novinha... até me arrependo um pouco.- sorri- Mas no final é sempre assim, e ninguém contava com aquele gorfo! hahahaha
-hahahaha! E seu namorado é um cara bacana... mas é bom lembrar dessas coisas...
-E eu nem sabia que você também queria, no final eu achei que você tinha desencanado ou que não queria nada, sabe?
-Ei! Relaxa, não deu tempo de estragar, sempre poderemos pensar sobre como poderia ter sido, a vida é assim- Falava a verdade, depois de destruir alguns relacionamentos e galinhar por todas as noites havia sacado que a ideia de que algumas coisas, que não aconteceram, poderiam ter funcionado, dava-lhe esperanças de que ainda viriam coisas boas, uma noção de felicidade paralela que serve de corrimão.- hum, o que me diz dessa garrafa lacrada a nossa frente?
-Atraente!
-Eu considero um objetivo a ser alcançado!
-Um brinde ao que poderia ter sido e não foi!
-Um brinde!
Coisas completamente distantes e relevantes devem ser tratadas com algo precioso, digno de um brinde e algumas risadas, ele era fraco, e por ser fraco tinha colhões o suficiente para se tornar um bom amigo sem arrependimentos.
Um brinde e um black-out, ela foi dormir com o namorado momentos depois, muito embora nunca venha a esquecer de nada daquilo, pois era uma mulher de verdade. Já ele acordou num sofá estranho, depois entre dois colchões estranhos, como dia anterior que havia acordado num carro cheio de amigos bêbados dormindo com a cabeça pra fora da janela, com um homem de verdade as coisas estalam, acontecem, um homem real não pretende a mulher do outro.... acorda e lembra, e caminha pra casa cansado, cambaleando e coçando as novas cicatrizes carregadas de esperança, enrolando um cigarro que encontrou rasgado na mesa da casa estranha... sempre rumo ao lar!
Chegar ao lar é lembrar disso, deitar na cama solitária e se lembrar que ficar sozinho é bravura pura, e pessoas excessivamente fortes não entendem a força de um passo.