segunda-feira, 30 de agosto de 2010

eu, desistente- Roberto Torrance.

o homem passivo olha as coisas e pensa:
a placa, o poste e a grama ficam me olhando me atrapalhando...
a grama me faz coçar o pé, me irrita coçar o pé, odeio ficar com coceira, me irrita, e ela me olha de baixo pedindo piedade, "não pise em mim", CARALHO!!! como eu não pisaria em você, você fica me cercando cretina! o poste fica na minha frente, fica parado e inofensivo, olho a minha frente e lá está ele... mas claro, ele não vale a pena, ja tentou conversar com um poste? postes não falam nada! o pior de todos os intempéries citados é a placa, óbvia, te olhando de cima, mandando em você "pare""estacione", só faltava um "pare seu anão idiota", mas dar-me ordens não a faz menos rasa e chata!
o homem continua passivo, quieto, pensando "não aguento mais!", dizendo para si mesmo repetidamente:
"tudo que eu quero é deitar no chão, no meio da rua ou da calçada, relaxar todos os meus músculos segundo após segundo e assim ficar junto da terra, abaixo de tudo e esquecido" e continuo assim no mantra que me ajudou esquecer que sou humano, afinal, quem quer ser humano?

relógio quebrado- Giovana Vilela

Duas e meia da tarde. Sol escaldante. Olho a hora no relógio da avenida, o meu de pulso quebrou mais uma vez. No centro da cidade, outro ônibus passa, mas não é o que eu preciso. Há tempos estou sem o bendito relógio, que fez o favor de caducar que nem eu. O coitado está pior que os cabelos brancos na minha cabeça. De que adiantou trabalhar suado para comprar um relógio de trezentos paus se ele já deu pau umas três vezes?

Com a perna um pouco manca, desisto dos ônibus e resolvo ir a pé. É melhor evitá-los, de qualquer forma. Meus sapatos estão bem gastos, e caminho devagar, por causa do sol da tarde, pelos doze quarteirões que separam a minha casa da relojoaria.

Chego lá e sou recebido por uma fila imensa, cheia de pessoas impacientes e suadas como eu. Pego a senha e vou me sentar na cadeira da fila, por sorte um rapaz acabara de sair daquele lugar. Uma garota de uns dezesseis anos olha para mim da outra ponta da sala de espera com uma cara de “meu deus, quê isso?”. Será que eu estou tão velho assim? Algumas rugas do tempo na pele ressecada... Impossíveis de esconder. E olhos miúdos com rachaduras nas bordas de tanto enfrentar o sol no antigo trabalho de carteiro, sim. Mas com a saúde de um jovem da idade daquela garota! Ta, nem tanto.

Horas se passaram desde a minha chegada e eu só quero estar de volta a minha casa, habitada única e exclusivamente por mim, há mais de quinze anos. O relógio só me traz problema, mas eu não posso simplesmente comprar outro. Ele estava comigo quando conheci minha segunda esposa, casei e tive dois filhos. E ouviu meu pranto quando os perdi no acidente de ônibus. Fui um dos únicos sobreviventes. No meio dos escombros, o relógio também sobreviveu, resgatando entre os ponteiros das horas e minutos a lembrança dos meus entes queridos.

A atendente já me conhecia e o problema do relógio era o mesmo. Em quinze minutos estava novo em folha. Exceto eu, que embora feliz com objeto funcionando em meu braço esquerdo, saia da relojoaria com a sensação de que a bateria trocada serviria apenas por tempo provisório; até que as lembranças se esvaíssem do meu ser e eu tivesse que arrumar o relógio novamente.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

(sem título)-João Pedro magro; Caio Sorio; Julian Isidoro; Gabriel Turella; Enzo Tessitori

Eu queria ser um soldado
para um objetivo ter
não penso estar errado
pois sei que uma hora irei morrer
a procura do norte, procuro me perder.

Executar, a missão, o próximo, o futuro.
não penso, faço!
Seguro minha faca, como ela, sou rígido
pois se assim não fosse, não seria nada
Sem faca, sem escudo, me lanço ao por vir.

Me lanço e caio,
Caio com a certeza de um soldado.

destino inútil- Giovanna palermo

Se Deus já me deu um RG,
Então eu preciso viver pra quê?

''fabulinha'' sobre a lúcida solidão- Rolando Vezzoni

Não serei irônico, não serei nulo, serei eu apenas um péssimo contador de histórias, desonrado e profano que agora,"em verdade vos diz"... Não mentem para vocês, apenas estupram a verdade até que dela saia um mundo plano com pessoas planas.
Segue a fábula.
...
Era uma vez, num belo dia noturno que ninguém viu, dentro de uma sala branca com uma lâmpada acesa no teto emitindo uma luz branda, logo abaixo dela,havia um aquecedor que envolta deste, haviam cinco cadeiras dispostas uma em frente a outra (e também de frente para o aquecedor) com cinco pessoas sentadas em silêncio. Ao redor da lâmpada haviam cinco moscas, que prosseguiam circulando-a, e se aquecendo do calor que esta lhes possibilitava.
“está frio aqui” disse uma delas (pessoas)(?).
“problema é seu!” disse outra.
Uma terceira levantou, andou em direção a primeira e lhe cedeu um casaco.
Vinte minutos se passaram sem novas manifestação das cinco pessoas.
“me sinto um idiota, eu lhe dei um casaco, agora tenho menos casacos e não recebi nada em retorno... Na realidade deveríamos te matar, pois suas reclamações estavam querendo mudar a harmonia das coisas... Mas por outro lado eu me senti particularmente bem por ter lhe cedido o casaco, e não sinto vontade alguma de te matar nesse momento.”
“é porque você apenas ajudou o próximo dando-lhe um casaco, embora quem lhe de o calor e lhe ame seja o Aquecedor, então ceda-me um casaco e outro para o aquecedor, a mim por ter intermediado a relação sua com Ele!” disse outro com uma veemência absurda, e essa verdade mostrou ao benfeitor uma desculpa para ser-lo, e também lhe ensinou como deve fazer para ser sempre bom sem entrar em débito com Ele.
“verdade! Muito obrigado pela iluminação dada! Lhe devo um pouco de tudo que tenho para aumentar o calor do aquecedor!” disse colocando uma grande parte de tudo que tinha acima do aquecedor e uma outra parte deu a aquele que em verdade lhe dizia.
Nas próximas horas, quatro dos cinco habitantes da sala louvavam o aquecedor, três desses passavam frio e o quarto sendo o porta-voz Dele, não... Um dos cinco não louvava o senhor aquecedor, portanto era visto com repulsa pelos seus conterrâneos.
No dia seguinte ao acordar, o ateu viu três mortos de frio, o aquecedor pegando fogo e o porta-voz morto por sufocamento, sufocado pela quantidade homérica de roupas e luxos que lhe cobriam... Todos nulos por sua crença desproporcional.
O sobrevivente continuou com a razão, e sozinho.
...
essa "fabulinha" não vai para o festival de natal da globo, vai?

superlativos- Nico Ascenção

O grito calado de um povo mansuetíssimo
Injuriados com um problema antiquíssimo
A barriga inchada de um menino magérrimo
Evidência de um dia-a-dia paupérrimo
Pele e osso, sangue ralo, fragílimo
Consequência da fome negra e crudelíssima
Da raspa do tacho, comeu a parte amaríssima
Acostumou-se a viver abaixo do mínimo
Para ser pobre há custos altíssimos
Explicarei para que entendas bem!
Comida não se paga, mas não se tem
Moradia não se paga, mas não se tem
Dignidade não se paga, mas não se tem
Isso é um retrato superlativo dos cidadãos miserabilíssimos.

a rua- Lígia Fernandes

Saio para dar uma volta, respirar um ar novo e teoricamente puro, pois até então preferi viver trancada em casa. Eu, meus livros, meu café, as músicas. No entanto, essa saída não me fez bem pelo impacto que causou. Saí e logo vi. Vi coisas horríveis, coisas estúpidas, coisas inúteis. Vi animais que nunca havia visto antes. Também andam sobre duas patas, mas são levemente corcundas e têm a cabeça inclinada uns noventa graus para trás com os olhos logo abaixo do queixo. Há, também, adaptações nos braços que deduzi por serem sacolas, uma de cada lado, com o tamanho suficiente para caber todo o meu armário multiplicado por dois. Vi pessoas em estado agonizante, outras vegetando. Queria ajudar. Não conseguia. Aquele forte cheiro de podridão (algo me fez lembrar de enxofre...) me enjoava de tal maneira que me vi forçada a me afastar. Sentei-me em uma calçada um tanto distante e fiquei observando. Logo menos surgiram mais homens. Esses pareciam loucos, estavam demasiadamente famintos: os vi se abaixando e procurando qualquer coisa para comer e pude notar o brilhos nos olhos quando encontravam pacotes de biscoito com restos de farelo. O que me surpreendeu é que ao encontrarem o mínimo que fosse possível, dividiam entre si.
Enquanto isso, ali mesmo naquela rua, dentro de um café estavam aqueles animais sentados bem perto da janela admirando a rua com aquelas cabeças levantadas e os narizes lá em cima. Tive a impressão de não notarem onde estavam, que somente apreciavam os estabelecimentos do outro lado da rua.
Agora, nada melhor do que mergulhar no meu café, viajar nas músicas e me abraçar com os livros. Tranquei a porta de casa novamente.

geladeira- Nico e Lígia

Eram onze horas da noite, andava agitado no apertado e abafado quarto-e-sala em Copacabana, a fome conseguia me apertar mais do que aquelas paredes e, num ato instintivo, abri a geladeira... "porra!" foi a primeira palavra que me veio à cabeça, uma palavra que expressava meu susto com o vazio daquela Brastemp velha que eu ganhara da minha mãe quando saí de casa! O vazio da geladeira era reflexo do meu vazio, do vazio da minha conta bancária! Era foda, nesse ramo não posso por dinheiro no banco, dinheiro sujo, andava só com ele em espécie no bolso, e por isso sangrava de pouco em pouco, cerveja em cerveja e putas em putas! Essa vida de matador de aluguel não me levou a grandes conquistas, saí de casa cedo porque engravidei uma menininha da minha vila com 16 anos, tinha que me virar na cidade e comecei a praticar pequenos furtos. Como o que é pequeno cresce, quando me vi já estava assaltando lojas e mercados, eu era bom nisso, até que um bicheiro da área resolveu me apadrinhar... Virei um jagunço profissional!
A única coisa que eu ganhei na vida que posso chamar de meu é esse ódio que sinto por tudo e por todos, executaram minha mulher e meus dois filhos, eu não estava em casa... Foi nessa época que fui apadrinhado, andava mal, era um assaltante, mas nunca havia matado, nunca havia precisado e agora mais do que nunca sentia uma vontade do caralho de sair atirando por aí, fazer justiça da forma mais bruta e, ironicamente, da forma mais prazerosa!
Necessidade. Passado um tempo na companhia exclusiva desse meu ódio, essa vontade de sair atirando por aí passou a ser uma necessidade. A vontade da justiça, o desejo de matar... Eram tão fortes que o que sentia era não somente psicológico, mas físico também. Queria, queria, queria. Precisava. E não havia o que impedir. No estado em que estava, alucinado, saí mesmo atirando por aí. E que prazer em me satisfazer! Já não me importava mais em me vingar da morte da minha mulher e os dois filhos, provavelmente saíra do controle, mas aquilo realmente era gostoso...
Pouco ficava em casa, já que não tinha nada além de uma cama, sofá e uma geladeira vazia. Andava pelas ruas, perambulava pelos becos. Bebia pra caralho e conheci ótimas putas. O negócio era bom mesmo! Conheci, também, uns caras que me descolavam uma boa. Perdi noção das horas, dias e meu nome só lembrava por causa do RG guardado na carteira. Mas isso nada importava: bebia, trepava, fumava e, agora, ganhava por matar! Vida boa assim não é fácil, não...
Quer saber, é fácil sim! Dava um tiro numa cabeça aqui e um trocado vinha parar no meu bolso, uma surra ali e mais um trocadinho, eu me esquecia de comer, andava alimentado do medo alheio, daquele medo do minuto final que a encomenda sente! Covardes, gente boa com certeza não morre pelas minhas mãos, só matei vagabundos dignos apenas de morte, sempre malandros quando estão em vantagem, mas naquele momento em que sentia que ia morrer, se cagavam. Comecei a associar a morte com um cheiro de merda... Covardes! Sou conhecido no ramo pela eficácia, o nome da encomenda e um dinheiro na mão, já bastava pra encaminhar mais um pro inferno.
Caralho, mas aqui agora estou eu, puto... Num sábado, 11:05 da noite, sem encomendas pra tratar, deve ser porque hoje é natal, deram uma trégua, mas fico tranquilo porque não dura até o ano novo essa escassez de clientes. Como sempre, o tempo passa e um novo ano começa, mas as coisas continuam iguais, eu mato, bebo, fodo, fumo e olho pra essa merda de geladeira vazia que diz mais quem sou do que uma verdadeira auto-biografia!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

romântico de trás- Anônimo

O corpo sua
O movimento começa
O coração dispara
A visão dispersa
A alma fica crua
As pernas tremem
O mundo num instante pára.
Não, não é aquilo que muitos temem
Não, não é aquilo que chamam de amor
É de onde provem toda a vida no mundo
É aquilo de onde vem todo o incorreto,
É, única e exclusivamente, o sexo.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

os desesperados da America latina- Nico Ascenção

Futuro cego, surdo, mudo e louco
Fartura do que não interessa sempre é pouco
O ontem mostrou o que faremos amanhã
Onde está a paz na terra de Tupã?
Miséria e corporações assolam Iracema menina;
Enquanto ricos nutridos mandam na Latina

Choram, já não há mais leite derramado
Três vacas magras e moribundas não são gado
Inabaláveis políticos cruzam os braços pois,
Os famintos e esquecidos são assunto pra depois.

o filme de ontem- Lígia Fernandes

Hoje me sentei para ler, mas não consegui me concentrar. As letras se desagregavam das palavras, se misturavam e formavam uma nova. Um nome, seu nome. E formavam mais e mais palavras. E diálogos. E me traziam sua voz. E conseguiram imagens. E, de recortes em recortes, editaram um filme. Comédia romântica? Nem pensar, não chega nem perto. Mas me fizeram rir. E me fizeram chorar.

E, como boas produtoras, essas mesmas letras foram capazes de me deixar ansiosa, esperando e sonhando com o que poderá vir depois: lançaram um filme sem fim.

Preciso expandir meu banco de lembranças suas...
Li tuas palavras
ou umas que me lembrassem você.
Porque ultimamente tem sido difícil.
Difícil ler e não ler seu nome,
ouvir e não ouvir sua voz,
enxergar e não ver seu rosto.

Finjo.
Finjo que não o li,
que não o ouvi,
que não o vi.
E deixo você voar,
nos meus sonhos,
até o sol raiar.

Um sorriso.
Um suspiro.
Porque o li,
o ouvi,
o vi.
De fato.

domingo, 1 de agosto de 2010

não para de pingar -Roberto Torrance

-Sim, digo, sim. Sim, eu estava cozinhando doutor, e a faca escorregou, não foi intencional, digo... totalmente intencional, sabe, se está segurando uma faca se está sujeito a se cortar, não?
-Eu estava cortando algo, algo que se é feito para se cortar, quando acabou que o cortado fui eu.
-Como eu me senti doutor? Bem, certamente, muito bem... não houve barulho, e eu sorri.
-Não, não doeu, de forma alguma... isso é triste?
-Gota após gota eu via aquele liquido terrivelmente vermelho escorrendo, via algo belo se desenhando no chão branco da cozinha, onde eu deitei por alguns momentos, imagino que isso não seja triste... O resto todo que é.
-Eu queria apenas que parasse logo, que parasse logo.... Por favor. por favor... PARA!
-o que não para? O sangue, o sangue não, não para de pingar.