quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

a acefalia coletiva.- Rolando Vezzoni

Amanheceu, como ontem, anteontem...
Ele acordou, tomou banho, e se vestiu.
Ela preparou o café da manhã.
Eles comeram.
Ele foi ao trabalho, e ela ao colégio das crianças para a reunião de pais.
O outro o encontrou no trabalho.
-bom dia.
-bom dia.
-o que temos para fazer?
-não sei...
Era outro dia normal de trabalho.
Ela encontrou com a outra na reunião de pais.
-bom dia.
-bom dia.
-como tem ido as crianças?
-bem, e o seu menino?
-bem.
Encaminhavam-se para a reunião.
Eles saíram para almoçar, mas nunca tinham fome, então bebiam em um bar das redondezas.
O centro da cidade era muito pequeno, tinha muita gente deitada ocupando espaço da calçada, muito cheiro de fezes humanas na praça... Como odiavam andar por ali. O barman os viu chegando.
-duas?
-duas.
-é.
-o que você vai fazer depois do trabalho?-perguntou o outro.
-eu estou tendo um caso, mas nada sério, vou ficar até mais tarde no escritório.
-você não é casado?
-sou.
-ah.
Voltaram para o escritório, respirando a poluição da cidade, que lhes incomodava, por mais que soubessem que ela é necessária para o progresso... Então reclamavam em silencio, para si mesmos.
Já era uma e meia, como ontem, anteontem...
Elas saíram da reunião, que havia sido exaustiva. Todos reclamavam das crianças e dos jovens...
-é normal fazer brincadeiras maldosas com os outros! Quem nunca fez? Hoje em dia reclamam de tudo.
-falaram algo dos seus?
-nada de importante, e do seu?
-nada.
-o que você fará hoje?
-nada, meu marido fica até mais tarde no trabalho, não preciso fazer jantar, então eu vou assistir tevê, e você?
-vou encontrar com um velho amigo meu hoje mais tarde...
-ah.-ela deixou o colégio e voltou para casa.
Ela não queria ir para casa, odiava ficar só. Mas logo as crianças voltariam, e ela teria com o que se ocupar.
O outro já havia saído do escritório, havia perdido o emprego por ter bebido no almoço.
Ele não.
O outro parou no bar, e vai por lá ficar um bom tempo, afinal, a outra ficaria irritada com a notícia pois adora comprar coisas.
O dia passou mais um bocado, como os outros que vieram antes.
Ele estava só no escritório.
A outra estava chegando.
Encontraram-se, transaram, e foram embora.
A outra chegou em casa, não viu o marido, e foi dormir.
Ela esperou ele chegar.
O outro dormiu no sofá do bar.
Ele foi dormir com ela.
-como foi seu dia?
-normal, e o seu?
-normal.
-boa noite.
-boa noite.
E eles dormiram, como ontem, anteontem...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

elogios á parte

de novo,
a casa...

Porta aberta,
escancarada,
esmurrada.
Janela quebrada,
estilhaçada.

Parede rachada.
ovo estourado,
sujando o tapete.
latidos do cão.

Chuva com trovão,
bebe chorão.
animal fedido,
ferido.

Carpetes roídos,
rasgados.
Móveis podres,
despedaçados.

Garrafa estourada,
no chão da cozinha...
Serei eu,
assim tão feio?

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Dependência- Caroline Bellangero

O vidro segura o álcool,
que segura o homem pro dia seguinte

O homem segura o vidro,
que leva a água, o vinho, ao pedinte

O álcool seca no vidro,
seca na boca,
e na carne fria

O vidro segura o homem,
que nem o álcool,
só que sem vida

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A vela- Rolando Vezzoni

Agora eu fugia, fugia da fuga, que era pouco antes, importante, tanto quanto um remédio necessário, mais que necessário.
Entrei quase destruindo a porta da casa, esta, em abandono extremo.
Por fora carcomida pelo vandalismo e podridão, por dentro era pior.
Era Tudo tão escuro.
Procurei o conforto, mas minha droga me afastava.
Sondando pela casa logo vi uma vela que naquela escuridão brilhava fraca num candelabro torto.
Andei cautelosamente atrás de seu calor.
Me aproximando, percebi algo nas sombras, um rosto com olhos enormes carregados de olheiras maiores ainda, uma boca lotada de dentes e escárnio com a palidez de quem sabe apenas temer.
o tempo parou.
...
Odiei aquilo que via, fedia a morte.
Enlouqueci.
Precisava me livrar daquela fera.
Urrei. Corri. Abati.
...
Tudo se desmaterializou, e pedras brilhantes choveram sobre meu pé.
O que vira a pouco era meu reflexo, num espelho tão sujo que me escapou qualquer semelhança,
e agora, lá eu jazia, no chão, quebrado como um quebra-cabeça incompleto, e sujo de sangue.
Tentei me reconstruir, mas a vela apagou furtivamente.
...
Eu me encontrei perdido.
Não há mais luz, nem esperança.