sábado, 1 de dezembro de 2012

Para não esquecer- Caroline Bellangero


O meu peito dói. constantemente ele grita para lembrar que ainda existe e, constantemente, eu o calo.
Ele abriga uma saudade pesada d'um lugar longe no tempo, e sempre que estou só ele me lembra de uma história.

Era uma manhã bonita como quase todas as lembranças de manhã que eu tenho de lá. eu chegava miúda e passava de braço em braço pelas gerações. era primeiro aquele colo quente e perfumado de minha mãe e depois o macio e carinhoso da vovó. Eliana, eu sabia, mas para todos, Lili. eu chegava lá cedo e continuava meu sono cortado, acordava só mais tarde, com o cheiro do café fraco. aquele lugar tinha um quintal grande coberto por uma parreira que dava uva fora de época e uma piscina esquecida. tudo lá tinha aquele mesmo cheiro doce, que se misturava ora com o café, ora com o feijão ou com os bolos no final da tarde. fubá com erva-doce, o melhor. e comíamos, falávamos, brincávamos. todo dia era carnaval fora de época. naquele quintal, sobrevoei o mundo em aviões imaginários, fui uma náufraga em ilhas hostis, fui camponesa, fui rainha e fui mãe. e ela comigo, a bordo de todas as fantasias por toda a tarde.
Quando o céu das seis horas era tomado pelo escurecer do céu das sete, o quintal era lavado como um ritual de purificação, às vezes com um pouco de pressa. a casa se punha limpa e em ordem e ele chegava exigindo silêncio. sentava na ponta da mesa e esperava o jantar, embalado por copos atrás de copos de bebidas diversas. comíamos e ele ia ver televisão. ela, arrumava o resto da bagunça e arquitetava a minha despedida. daquele momento em diante, eu sabia que tudo ia acabar e devagar me fazia triste.
Minha mãe aparecia para me buscar e no caminho de volta para casa algumas lágrimas silenciosas eram derramadas enquanto a cidade passava, deixando para trás o meu mundo de possibilidades.

O tempo correu e eu ia me afastando cada vez mais de tudo isso. meu corpo cresceu e me cobravam uma postura mais sóbria que eu assumi sem dificuldades. o quintal comprido foi virando rotina só de domingo, para um almoço grande. os domingos foram acontecendo só de quinze'm'quinze. só de mês em mês.

Até que um dia eu deixei o quintal preso em algum lugar lá atrás e fui para longe dali. você não teve escolha e ficou com o quintal e o ritual de lavá-lo nos finais de tarde. de vez em quando, ainda recebo suas ligações no começo da noite, a hora que seria depois do jantar, para você se despedir como fazia antes. eu sinto sua voz de saudade e meu rosto inunda com as lágrimas que ainda escorrem ao perceberem que eu não estou mais lá.

O meu peito dói. constantemente, ele grita para não esquecer.

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