segunda-feira, 30 de agosto de 2010

relógio quebrado- Giovana Vilela

Duas e meia da tarde. Sol escaldante. Olho a hora no relógio da avenida, o meu de pulso quebrou mais uma vez. No centro da cidade, outro ônibus passa, mas não é o que eu preciso. Há tempos estou sem o bendito relógio, que fez o favor de caducar que nem eu. O coitado está pior que os cabelos brancos na minha cabeça. De que adiantou trabalhar suado para comprar um relógio de trezentos paus se ele já deu pau umas três vezes?

Com a perna um pouco manca, desisto dos ônibus e resolvo ir a pé. É melhor evitá-los, de qualquer forma. Meus sapatos estão bem gastos, e caminho devagar, por causa do sol da tarde, pelos doze quarteirões que separam a minha casa da relojoaria.

Chego lá e sou recebido por uma fila imensa, cheia de pessoas impacientes e suadas como eu. Pego a senha e vou me sentar na cadeira da fila, por sorte um rapaz acabara de sair daquele lugar. Uma garota de uns dezesseis anos olha para mim da outra ponta da sala de espera com uma cara de “meu deus, quê isso?”. Será que eu estou tão velho assim? Algumas rugas do tempo na pele ressecada... Impossíveis de esconder. E olhos miúdos com rachaduras nas bordas de tanto enfrentar o sol no antigo trabalho de carteiro, sim. Mas com a saúde de um jovem da idade daquela garota! Ta, nem tanto.

Horas se passaram desde a minha chegada e eu só quero estar de volta a minha casa, habitada única e exclusivamente por mim, há mais de quinze anos. O relógio só me traz problema, mas eu não posso simplesmente comprar outro. Ele estava comigo quando conheci minha segunda esposa, casei e tive dois filhos. E ouviu meu pranto quando os perdi no acidente de ônibus. Fui um dos únicos sobreviventes. No meio dos escombros, o relógio também sobreviveu, resgatando entre os ponteiros das horas e minutos a lembrança dos meus entes queridos.

A atendente já me conhecia e o problema do relógio era o mesmo. Em quinze minutos estava novo em folha. Exceto eu, que embora feliz com objeto funcionando em meu braço esquerdo, saia da relojoaria com a sensação de que a bateria trocada serviria apenas por tempo provisório; até que as lembranças se esvaíssem do meu ser e eu tivesse que arrumar o relógio novamente.