quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A história precisa de um final.- Bruno Santana


“Isso não é nada inspirador”; pensou ele depois de uma hora folheando diários antigos. ”Que raios de ideia foi essa: buscar inspiração nos vômitos cotidianos de minha mente perturbada. Isso não funciona, se vomitei é porque não tinha valor. Eu deveria sair para caminhar, comprar café, comprar um livros, ver alguns pássaros ou algo do tipo”. Fechou o último caderno, guardou o lápis no estojo, arrumou a mesa e passou a mão na cara.
“Não vai dar em nada; sei que não vai dar em nada. Não é assim que se escrever. Não! Não! Lembre-se das máximas! Lembre-se dos grandes!”. Enquanto pensava, pegou o bloco em que anotava grandes aforismos.
“Aprender a ler bem e a escrever bem” ~ Friedrich Nietzsche
“Find what you Love and let it kill you” ~Charles Bukowski
“There is nothing to writing. All you do is sit down at a typewriter and bleed.” ~Ernest Heminghway
“Merda! Onde ficou aquela da Sylvia. Aquela sobre não poder interromper o fluxo de pensamento na hora de escrever ...
.... era algo como: “Não posso estancar o sangramento. Quando olho, lá está o fluxo; sangue, poesia.” É, deve ser algo parecido.”. Fechou o caderno e saiu para a varanda da casa. No caminho, apanhou o maço de cigarros e o isqueiro vermelho.
Sentou com os cachorros por um momento e acendeu o cigarro. Na primeira tragada sentiu o peso do mundo em seus ombros; talvez não do mundo todo, mas da parte de mundo que não consegue escrever um conto. “Por que essa obsessão com contos? Era muito mais feliz quando escrevia poemas. O que quero ser? A porra de um Salinger ou Machado de Assis. Não tenho colhões para ser nenhum deles.”
Pensava que a necessidade de escrever contos surgira depois de ver o edital de um concurso para escritores. Aceitavam trabalhos na forma de contos ou romances. Um romance, com certeza, ele não produziria. Escrever uma novela é como casar e ter filhos: é preciso maturidade para não fazer merda e colocar outro perdido no mundo.
Sendo assim, sua oportunidade era trabalhar em cima das pequenas estórias.
Ele até tinha algumas. Quatro ou nove pequenas narrações não terminadas. Era sempre assim. Sentava ao computador, escrevia dez páginas e a mente secava. Construía personagens interessantes, esboçava uma trama, um cenário, mas era só isso. Suas estórias nunca tinham fim.
Escrevera a do gênio solitário, do menino sem emprego, da garota morta, do casal com problemas. Ótimas estórias, bom estilo, veia narrativa perfeita. No entanto, nenhuma delas tinha final.
Tentara levar seu problema ao analista, mas problemas de escrita não são matéria de psicólogos. Psicólogos sabem de mentes com defeitos e não de estórias sem final.
Também tentara ver mais filmes, ler mais livros, ouvir mais músicas, mas nada funcionava. Pensava, pensava, pensava, mas nenhum pensamento trazia fim à suas estórias.
Certa vez teve um insight: “Como posso escrever finais, se nunca terminei nada que comecei!?”. Começara a faculdade e não terminara, tinha um namoro péssimo que não terminava por comodismo e até sua higiene bucal era deixada pela metade. Era impaciente. Ansioso.
Sempre estava entre a xícara de café e os cigarros. Ansiosamente terminando um e começando outro. Vale a pensa acrescentar: era fato sabido que suas bitucas eram as maiores bitucas do oeste.
Ao menos, o dia era frio. Como constatara ao fumar o cigarro na varanda. Chovera na noite anterior e as nuvens encobriam o sol. Seus cachorros estavam encolhidos dentro da casinha e fumar foi um ato solitário.
Enquanto expelia fumaça dos pulmões alguns pensamentos passavam por sua mente, Infelizmente, nenhum era importante o suficiente para ser escrito. Infelizmente, nenhum era tão bom que oferecesse um final para alguma das histórias.
Ponderou que tudo aquilo de escrever era bobeira adolescente. Começara com a mania boba depois que tomara um pé na bunda. Seu coração partido só encontrava consolo na folha de papel em branco.
Poderia ser isso: precisava de um coração partido. No entanto, conseguir um nesses dias não era tarefa das mais fáceis. Com o tempo, construíra uma barreira emocional intransponível. Teria de tentar outra coisa.
Pegar o ônibus, sentar no banco da praça e rabiscar no bloco de anotações. Essa sim era uma grande ideia!
Saiu da varanda. Entrou no quarto. Trocou de roupa. Pegou um maço novo de cigarros, uma caixa de fósforo – preferia os fósforos quando saía de casa - , procurou algumas moedas, tomou o bloco e um lápis e foi para o ponto.
O ônibus não demorou muito; apareceu em cinco minutos. Prosseguiu até o terminal, de onde tomou outra condução para o centro da cidade. Já na viagem,olhando o rosto das pessoas, teve idéias e esboçou um pequeno poema:
A afronta ~ Giovani Ferreira
Poemas não levam ao céu
Poemas não salvam a pátria
Poemas não enchem barriga
Poemas não ganham garotas
Poemas não fazem nada.
“Um belo poema, mas precisa de um final.” Pensou ele enquanto descia e seguia para a praça. Lá instalado, retirou seu caderninho, o lápis, acendeu o cigarro e começou. Olhava, olhava e olhava. Procurava por cores, caras, formas e tons. Nada parecia suficiente.
Viu uma criança correndo atrás dos pombos. Viu um escarrando, um casal discutindo, um trabalhador seguindo apressado. Não era o esperado. Escrevia três palavras. Riscava duas. Seguia assim.
De repente, uma garota estranha sentou ao seu lado no banco. Possuía aquele tipo de estranheza que deixa as garotas bonitas. Vestia uma camiseta de rock; “The Velvet Underground and Nico”, aquela da banana, concebida por Andy Warhol. Isso interessou o escritor. Interessou muito. Interessou tanto quanto o jeito estranho da garota. Aliás, a camiseta completa seu jeito estranho.
- O que você está fazendo com esse caderninho bonitinho?
- Tentando escrever.
- Legal! Eu também escrevo.
- Interessante.
- Escrevo muito bem por sinal. Tenho ótimos contos, estou procurando alguém para publicá-los.
- Ótimo para você.
Encerrou ele com rispidez. Apesar do interesse na estranheza da garota, não gostava de ser interrompido enquanto escrevia. Estava quase escrevendo algo bom quando a senhorita chegara e ela cortara todo fluxo de pensamento.
Olhou para o caderno, rodou o lápis no dedo, acendeu outro cigarro, mas o fluxo tinha acabado por definitivo. Olhou para ela: estava estirada no banco, olhando atenciosamente para ele. Ela usava um óculos com armação de vó, desses que as garotas modernas pensam ser legais.
- Posso ver o que está escrevendo?
- Não. É pessoal.
- Ah! Corta essa. Pare de ser tímido. Se escreve, escreve para alguém, por que não posso ser esse alguém?
- Por que não. Não escrevo para ninguém. Escrevo para mim mesmo.
- Um belo escritor chato você é. Sim, um escritor bem chato.
Disse ela fechando a cara, fazendo um bico e largando-se ainda mais no banco. De repente, a garota soluçou.
Ele olhou e ela estava chorando. Chorando de verdade.
- O quê? Por que está chorando? Pára! Pára com isso! Não posso ver uma garota chorando.
- Você não gosta de mim. Por isso estou chorando.
- Eu nem te conheço. Não interessa se gosto de você ou não. Pára com esse choro. Quer ler o que eu escrevi. Toma, toma! Mas pára de chorar ok!?
- Tá bom.
- Temos um trato!?
- Sim.
Disse ela, esboçando aquele sorriso de criança quando consegue algo depois da chantagem. Pegou o caderninho e leu:
Quando termina o tempo de sorriso
ainda há tempo?
Quando a piada se perde na graça,
quando o riso desiste da praça,
quando o rosto rechaça,
quando nada é cachaça
ainda há tempo?
Você acha?
- Acho não! Tenho certeza! Sempre há tempo?
- Oi!?
- Estou respondendo a pergunta do seu poema.
- Ah sim. Obrigado. Feliz agora?
- Sim. Você escreve muito bem, mas sua letra é feia e suas frases muito tristes. Você é triste por ter a letra feia?
- O que minha letra tem a ver?
- Tudo. A letra é tudo para quem escreve.
- Besteira.
E voltou para a sua escrita; a menina continuava ali, sentada, olhando para o escritor trabalhando. Ele começou a descrever a garota no bloco. Pensou que aquele tipo poderia ser interessante para um personagem. Fez a imagem detalhadamente: os cabelos castanhos na
altura do ombro, a pele pálida, os olhos selvagens, a camiseta do Velvet Underground, aquela curiosidade insistente, o choro bobo.”Ao menos consegui um personagem.”Começou a sentir certa afeição pela garota. Resolveu perguntar seu nome.
- Luana. Muito prazer!
- Me chamo Giovani. O prazer é todo meu.
- Vai fazer algo agora Giovani!?
- Volto pra casa em meia hora, vai ficar escuro e perigoso aqui.
- “With the lights out it’s less dangerous”
- Quero ver cantar nirvana pra um estuprador na sua cola.
- Brincadeira.
Respondeu ela sorrindo.
- Quer ir para minha casa Giovani?
- Assim, tão rápido? Nem nos conhecemos, posso ser um maníaco qualquer!
- Que você é maníaco eu tenho certeza, mas não se anime. Só quero te mostrar meus textos. Quem sabe não te ensino a terminar um conto?
- Como sabe que não sei terminar contos?
- Oras! Tudo isso aqui: cigarros, banco de praça, a garota estranha chorando, o convite. Isto é narrativa de quem não sabe escrever final.
- Não. Isso quem está escrevendo não sou eu. Esse final não é minha responsabilidade.
- Você que pensa. Você é o protagonista. A responsabilidade é toda sua.
- Merda. Como vou fazer isso?
- Deixa que esse eu termino por você. Mas me compra um sorvete?
- Compro!
- Eba! Então vamos!
Tomou a mão do escritor, levantou e terminou o conto.

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