domingo, 13 de maio de 2012

Parada- Tomás Fernandes

Nesse exato momento estou sentado num banco numa parada de ônibus no meio da estrada. A caneta de plástico na minha mão está gelada, preferia ter um lápis um apontador e uma borracha, afinal sempre há o medo de borrar um pouco essa pedaço de papel envelhecido que deve ter encontrado no meio das minhas coisas. Na verdade já borrei um pouco.
Um velho está sentado ao meu lado. Ele fuma um cigarro e lê uma revista, de um tipo qualquer que pode ser lida por qualquer pessoa sentada num banco. O cigarro é de uma marca padrão, assim como o meu e também minha caneta, meu caderno e até nossas roupas que nem distinguem a nossa idade; ainda assim é o meu cigarro, a minha caneta, o meu caderno e as minhas roupas, tenho certeza disso. Não que isso faça diferença pra ele, que está apenas esperando o ônibus. Ppara mim por outro lado faz toda a diferença do mundo a minha caneta ter um sabor um pouco diferente daquelas que eu mordiscava nas aulas de geografia do ginásio.
Talvez já tenha conseguido explicar que na verdade não estou esperando qualquer um dos ônibus que estão na minha frente. Na verdade espero muito mais: ainda não sei qual eu vou pegar, embora devesse continuar seguindo pelo mesmo que vai levar ao destino que eu deveria ter escolhido quando o peguei. Claro, isso vai exigir um pouquinho de trabalho: subir ás escondidas e procurar um lugar vazio, encontrar algum motorista mais simpático que aceita um pequeno capricho desses, ou algum mais solícito ao dinheiro que guardo no bolso e me deixe sentar ao seu lado para ver a estrada (A estrada porque todas as estradas enquanto estradas são sempre a mesma coisa).
Mas, por que? Tem algum sentido nos meus atos? Gostaria tanto que tivesse, que fosse uma vontade pura, algo impensado e necessário, mas na verdade não sinto isso. Também não sinto querer chegar em algum qualquer lugar, quero na verdade não saber onde vou chegar, espero na verdade nunca chegar. Nada muito difícil, é só subir em qualquer um deles e descer na próxima parada. Não em uma cidade por favor, não quero identidade nenhuma, algum lugar como esse aqui.
Seria tão mais óbvio se fosse um ato de coragem, de perseguir a liberdade ou algo do gênero. Óbvio mas muito mais verdadeiro, muito mais...seguro de uma maneira boa. Não, é a outra opção óbvia, estou fugindo. Uma fuga completa, pura, a fuga pela fuga, quero entrar nela e viver para todo o sempre(ou pelo menos no tempo que é todo o sempre).
Minha mulher me disse que para quem é corajoso tudo se resolve. Na verdade aí o corajoso é aquele que se dispõe, o que consegue perceber o momento, sua condição e ainda assim atravessar isso, para moldar então o próximo instante. Eu sou um covarde, sempre fui um covarde, só posso querer ser um covarde, á parte isso não tenho em mim nenhum dos sonhos do mundo. Eu quero os sonhos do mundo, droga, só que isso é um capricho grande demais pra um covarde, então agora eu quero só o mundo.
Por ser um covarde tomei todas as pílulas que suavizam o inferno, o caos. Mulher, comida, dinheiro, livros... Mas cada vez o efeito era menor e menor e menor, ao mesmo tempo em que isso criava sua própria vida que se tornava então a minha própria. Uma vida externa a mim... e há anos não há outra.
Toda vida tem como objetivo acabar. Normalmente isso acontece quando falta ar nos pulmões ou o sangue pára de circular. Comigo não aconteceu nada disso. Um dia cheguei um pouco mais cedo do trabalho depois de passar na casa da minha amante e quando entrei em casa descobri minha mulher com o próprio amante. Eu já sabia, ela já sabia que eu sabia e os outros também. 
Eu poderia muito bem ter dito um oi, desculpe por atrapalhar, que tal um vinho? E quase fiz isso: antes de perceberem estava na cozinha pegando uma garrafa, mas de repente resolvi seguir a bula à risca. Quebrei a garrafa na cabeça dele, joguei minha mulher no chão e senti o prazer da ira(que surgiu dentro dos conformes). Até cai de bruços e comecei a soluçar no auge da autopiedade, que acalorava todo meu corpo naquele momento. O homem foi embora e minha mulher em vez de me abraçar pedindo desculpas, disse que eu era um idiota.
Enquanto eu ficava falsamente estupefato com a resposta dela, minha esposa ia jogando pela janela tudo o que era meu que encontrasse pela frente. Um livro que ela mesma havia me dado uma semana antes, todas as minhas roupas, meus cds, meus livros, quadros, fotografias... Parecia que toda a minha vida ia caindo na rua e se despedançando sob as rodas dos automóveis. E era impressionante a beleza daquilo, a destruição de todas aquelas coisas sem o menor significado, cds ouvidos só pelo ouvido, livros lidos só pelos olhos...
Foi assim, perdi aquilo que eu chamava vida, não estou aqui para procurar outra, ou para criar outra. Poderia ter me suicidado há tempos, mas não consegui, posso destruir o corpo que sobrou, mas já disse que sou covarde. Só quero me envolver totalmente na covardia agora.
Não vou escolher o ônibus. Agora boto uns óculos escuros, fecho os olhos, coloco minha caneta sobre o caderno e a giro. Sinto com as mãos para onde está apontando e vou cego até o ônibus. Ninguém abordaria um cego, é claro. Agora abro os olhos, escolho um assento. Por sorte não há ninguém.

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