Nesse
exato momento estou sentado num banco numa parada de ônibus no meio
da estrada. A caneta de plástico na minha mão está gelada,
preferia ter um lápis um apontador e uma borracha, afinal sempre há
o medo de borrar um pouco essa pedaço de papel envelhecido que deve
ter encontrado no meio das minhas coisas. Na verdade já borrei um
pouco.
Um
velho está sentado ao meu lado. Ele fuma um cigarro e lê uma
revista, de um tipo qualquer que pode ser lida por qualquer pessoa
sentada num banco. O cigarro é de uma marca padrão, assim como o
meu e também minha caneta, meu caderno e até nossas roupas que nem
distinguem a nossa idade; ainda assim é o meu cigarro, a minha
caneta, o meu caderno e as minhas roupas, tenho certeza disso. Não
que isso faça diferença pra ele, que está apenas esperando o
ônibus. Ppara mim por outro lado faz toda a diferença do mundo a
minha caneta ter um sabor um pouco diferente daquelas que eu
mordiscava nas aulas de geografia do ginásio.
Talvez
já tenha conseguido explicar que na verdade não estou esperando
qualquer um dos ônibus que estão na minha frente. Na verdade espero
muito mais: ainda não sei qual eu vou pegar, embora devesse
continuar seguindo pelo mesmo que vai levar ao destino que eu deveria
ter escolhido quando o peguei. Claro, isso vai exigir um pouquinho de
trabalho: subir ás escondidas e procurar um lugar vazio, encontrar
algum motorista mais simpático que aceita um pequeno capricho
desses, ou algum mais solícito ao dinheiro que guardo no bolso e me
deixe sentar ao seu lado para ver a estrada (A estrada porque todas
as estradas enquanto estradas são sempre a mesma coisa).
Mas,
por que? Tem algum sentido nos meus atos? Gostaria tanto que tivesse,
que fosse uma vontade pura, algo impensado e necessário, mas na
verdade não sinto isso. Também não sinto querer chegar em algum
qualquer lugar, quero na verdade não saber onde vou chegar, espero
na verdade nunca chegar. Nada muito difícil, é só subir em
qualquer um deles e descer na próxima parada. Não em uma cidade por
favor, não quero identidade nenhuma, algum lugar como esse aqui.
Seria
tão mais óbvio se fosse um ato de coragem, de perseguir a liberdade
ou algo do gênero. Óbvio mas muito mais verdadeiro, muito
mais...seguro de uma maneira boa. Não, é a outra opção óbvia,
estou fugindo. Uma fuga completa, pura, a fuga pela fuga, quero
entrar nela e viver para todo o sempre(ou pelo menos no tempo que é
todo o sempre).
Minha
mulher me disse que para quem é corajoso tudo se resolve. Na verdade
aí o corajoso é aquele que se dispõe, o que consegue perceber o
momento, sua condição e ainda assim atravessar isso, para moldar
então o próximo instante. Eu sou um covarde, sempre fui um covarde,
só posso querer ser um covarde, á parte isso não tenho em mim
nenhum dos sonhos do mundo. Eu quero os sonhos do mundo, droga, só
que isso é um capricho grande demais pra um covarde, então agora eu
quero só o mundo.
Por
ser um covarde tomei todas as pílulas que suavizam o inferno, o
caos. Mulher, comida, dinheiro, livros... Mas cada vez o efeito era
menor e menor e menor, ao mesmo tempo em que isso criava sua própria
vida que se tornava então a minha própria. Uma vida externa a
mim... e há anos não há outra.
Toda
vida tem como objetivo acabar. Normalmente isso acontece quando falta
ar nos pulmões ou o sangue pára de circular. Comigo não aconteceu
nada disso. Um dia cheguei um pouco mais cedo do trabalho depois de
passar na casa da minha amante e quando entrei em casa descobri minha
mulher com o próprio amante. Eu já sabia, ela já sabia que eu
sabia e os outros também.
Eu
poderia muito bem ter dito um oi, desculpe por atrapalhar, que tal um
vinho? E quase fiz isso: antes de perceberem estava na cozinha
pegando uma garrafa, mas de repente resolvi seguir a bula à risca.
Quebrei a garrafa na cabeça dele, joguei minha mulher no chão e
senti o prazer da ira(que surgiu dentro dos conformes). Até cai de
bruços e comecei a soluçar no auge da autopiedade, que acalorava
todo meu corpo naquele momento. O homem foi embora e minha mulher em
vez de me abraçar pedindo desculpas, disse que eu era um idiota.
Enquanto
eu ficava falsamente estupefato com a resposta dela, minha esposa ia
jogando pela janela tudo o que era meu que encontrasse pela frente.
Um livro que ela mesma havia me dado uma semana antes, todas as
minhas roupas, meus cds, meus livros, quadros, fotografias... Parecia
que toda a minha vida ia caindo na rua e se despedançando sob as
rodas dos automóveis. E era impressionante a beleza daquilo, a
destruição de todas aquelas coisas sem o menor significado, cds
ouvidos só pelo ouvido, livros lidos só pelos olhos...
Foi
assim, perdi aquilo que eu chamava vida, não estou aqui para
procurar outra, ou para criar outra. Poderia ter me suicidado há
tempos, mas não consegui, posso destruir o corpo que sobrou, mas já
disse que sou covarde. Só quero me envolver totalmente na covardia
agora.
Não
vou escolher o ônibus. Agora boto uns óculos escuros, fecho os
olhos, coloco minha caneta sobre o caderno e a giro. Sinto com as
mãos para onde está apontando e vou cego até o ônibus. Ninguém
abordaria um cego, é claro. Agora abro os olhos, escolho um assento.
Por sorte não há ninguém.
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