Demasiado Longos: Os grandes membros do café

Como as coisas, muitas vezes, fogem do controle e ficam grandes demais; nada mais justo que o café ter um espaço para grandes textos. Divirtam-se!

Lápide - Bruno Santana

Ajoelhado em pedras
atirando folhas e cinzas e cacos e lágrimas ao vento
enquanto reclamo da vida do céu de Deus e de você

você que não veio
Deus que não ajuda
o Céu que não cai

Eu que não sou Caim e
não matei meu irmão
vivendo neste inferno de Jó
neste buraco cristão
que chamam de terra

Em terra caio e oro
para um Deus que não conheço
um Deus de livros, números e fórmulas

Deus infiel de fiéis não convencionais
em uma religião não convencionada
de sinais abstratos e cânticos desconexos

Me pergunto em versos o sentido dessa existência
e me enfio em livros, coxas, filmes e canções
procurando tudo aquilo que perdi em coroas de flores
e café amargo e madeira e terra

e o bonde segue sem balanço
em uma viagem calculada
de trajetórias simétricas
para o buraco do inferno

inferno cavado em águas
jorrantes e ferventes de força descomunal

ao paraíso lisérgico que minhas mãos não tocam mais
lanço um último olhar
buscando um resquício da esperança

o que restou do que foi é o nada
deus dos desavisados e desamparados
que cavucam em linhas tortas
o que nunca foi escrito e nunca será.



Pseudo-ultra-violência - Bruno Santana


Bebera cinco doses de conhaque antes da festa. Por sua mente não passava nada parecido com uma boa intenção. Como sempre, não era de seu desejo estar na festa: estava sem humor, sem disposição e com poucos cigarros. Como detalhe especial da ocasião coloca-se o fato de ser uma festa à fantasia. Ou seja, chances altas de transar.
Ele gostaria de sexo. Gostaria apenas de sexo. Quanto menos conversa, melhor. Talvez, devesse ter bebido menos ... ou mais. Na dúvida, enfiou o pé na merda e encheu a cara de uísque durante toda a noite. Os detalhes da festa não são importantes: todos sabem como é uma festa à fantasia recheada de pseudo-intelectuais. Referências intermináveis de pseudo-inteligência em forma de roupas. Astros de rock, personagens de filmes B, heróis geeks e alguns personagens históricos. Chatice infinita.
O plano do álcool funcionou por cerca de uma hora. Fez três ou quatro contatos: uma Amélie Poulain, uma mina de propaganda feminista e duas mortiças. Nada deu certo, tornara-se o bêbado escroto. Depois de ouvir da Poulain que Bukowski era um bêbado pseudo-letrado sentiu nojo da vida, apanhou duas doses de uísque e ficou sentado num sofá fumando. Ao menos isso essas festas tontas ofereciam: bons lugares para fumar sozinho. Era o que podia fazer enquanto esperava seus amigos terminarem o coito com as irmãs chapeleiro maluco e Alice.
Estava terminando o terceiro cigarro e começando a segunda dose quando o clichê dos clichês sentou a seu lado: Uma mina de Alex Delarge. Quase ficou puto pelo clichê invadindo seu espaço, mas até teve simpatia pela decência de ela usar um curativo e sangue falso no nariz: a menos se esforçara para espantar a mesmice.
“Empresta o isqueiro Dylan?” – disse Alex em tom pseudo-ultra-violento. Dylan tateou o bolso por um tempo desnecessário, sacou o bic azul e entregou.
“Obrigada.” – disse a menina acendendo o cigarro. Dylan colocou um cigarro na boca, apanhou o isqueiro com força desnecessária e também acendeu o seu.
“Dylan caiu bem em você.”
“Era o que tinha. Nem queria aparecer nessa merda.”
“Por que apareceu?”
“Porque era o que tinha.”
“Você vive num mundo sem graça.”
“O mundo não tem graça.”
“O seu.”
“Como quiser.”
“Qual seu nome?”
“Não é importante.”
“Luiza, muito prazer.”
“Muito prazer, menina clichê.”
“Clichê?”
“Sim. Essa fantasia é a escolha de onze entre dez meninas pseudo-intelectuais prepotentes.”
“Você é o clichê. Não eu. Eu só me divirto.”
“Qual clichê?”
“Frustrado, inteligente e incapaz de usar a inteligência pra conseguir uma foda.”
“Não duvide do que sou capaz.”
“Okay então, Dylanzinho.”
“Você pelo menos tem decência.”
“Decência?”
“Sim, colocou a porra de um curativo pra ficar menos comum.”
“O curativo não é fantasia.”
“E o sangue?”
“O sangue é de mentira.”
“Estou bêbado e não entendo mais merda nenhuma.”
“Quer outro uísque? Posso te dar como agradecimento pelo isqueiro.”
“Ninguém paga uma bebida pra alguém que emprestou o isqueiro. Quer dizer, isso até poderia acontecer se fosse um cara chavecando uma mina. Mas aí ele pagaria tequila.”
“Por que tequila?”
“Pra ela ficar louca e pra ele parecer legal.”
“Entendi. Mas é com uísque que nós garotas clichês pseudo-intelectuais chavecamos frustrados. Não sabia desse, Dylanzinho gênio?”
“Está me passando uma cantada?”
“Sim. E você está caindo.”
“Quem disse?”
“Seus olhos nos meus peitos.”
“errrr ... ahmmmm ... é .... Laranja mecânica é meu filme preferido.”
“Tenho um aparelho de som incrível no meu quarto e uma ótima gravação de Beethoven. Quer ir para o bom e velho In and Out?”
“Desse clichê eu gostei.”
“Então vamos que hoje você escreve Just Like a Woman.”
 “Clichezinho interessante.”



O verso do macaco - Bruno Santana

Nossos corações estão com problemas
Sim, menina
a batida está errada

Nossos corações precisam de conserto
e concerto
e gramática
e semântica

falta sentido, menina.

Menina, desde aquele ano
não tem nada que eu saiba de você
e tudo que eu sabia
foi o que ficou
o que ficou e pingou
pingou e escorreu
nessa noite solitária
em revelações psicodélicas
de rosas azedas
no mundo das almofadas.

Não garota,
Não quero que fique assim:
essa balada interminável
de sons indecifráveis
de poemas insolúveis
de equações tão simples

Não, não, equações não podem ser tão simples!

Não, garota, diga alguma coisa!

Esse seu cabelo brilhando na lua
Esse cabelo dourado brilhando na lua
Esse cabelo dourado brilhando na luz
Esse cabelo dourado na luz incadescente
Não garota, diga alguma coisa!

Garota, diga: o que você tem a dizer!?

Garota, garota!

Onde está você!?

Garota,
tenho de terminar este poema sóbrio
mas este seu cabelo na lua
acaba com toda a coragem
que preciso para escrever
um poema sóbrio.

Imagine todos os escravocratas
pretensiosos e empolados
de sobrecasacas e suíças
lendo esse poema
de garotas e cabelos dourados
e brilho na lua
não garota
você precisa falar comigo

Ou isto vira um verso de macaco.

                                         
 Digressão absoluta ~ Rolando Vezzoni



   “Hum... tenho que estudar pra aquela prova, mandar o cachorro tomar banho e depois assistir aquele filme...”
   Eram lá pras 11 horas da manhã quando listou seus afazeres.
   Subia a rua á caminho do ponto, estava um dia bonito e meio morto, belo contraste com o anterior, que estava um calor seco e cinza chumbo.
   Não poderia de forma alguma se esquecer de estudar, tinha isso claro em sua mente, chegou a cogitar pescar uma folha de papel, escrever os compromissos e meter no bolso, mas sabia também que ia acabar esquecendo a folha ali mesmo e mandaria a calça pra lavar, o que faria o papel esfarelar formando confetes de papel "reciclado", o que o faria ter que gastar alguns minutos do seu tempo na enfadonha missão de limpar o bolso, mas só num futuro próximo. Logo, chegou à conclusão que deveria pensar numa forma mais eficiente de não esquecer aquilo.
   Durante o processo de seleção de alguma alternativa viável, percebeu que queria algo mais interessante para pensar, mas antes de elaborar esse algo, foi interrompido por um par muito bem feito e sadio de seios que balançava enquanto vinha rua acima, junto (é claro) de uma dona correndo de top e mini-shorts... Isso lhe foi mais do que o suficiente para cindir com o espaço-tempo de forma que acabou andando e  trombando de maneira debiloide com outra moça, igualmente dotada de mais que interessantes atributos físicos que estava parada esperando fechar o semáforo para atravessar a rua.
   -OW! Se ta maluco? Presta atenção pô!- disse ela em seu ato reflexo, depois de se acalmar emenda- pra onde você tava olhando? Quer ser atropelado?
   -ahm... Eu tava olhando pros peitos... Ah! Digo! Não! – disse automaticamente, ainda atordoado por causa da trombada, dos peitos, do cachorro, da prova e dos confetes.
   -quê?!- disse atônita.
   -Peraí, calma! Não eram os seus peitos e...  - parou quando percebeu que remendar a situação era difícil, e que sua competência lhe permitiu apenas o fracasso. - puts... Olha... Eu tava distraído, e, foi mal... Não que os seus não sejam bacanas! É que... Bom, pelo menos você pôde salvar minha vida! imagina?! Eu poderia ter sido atropelado!- Possivelmente ele não havia trombado de forma debiloide, ele poderia ser realmente debiloide... se bem que, quem não é quando caminha naquela região naquele horário? Não se pode ficar fixado em nada por mais de dez segundos sem se trombar em uma gostosa ou ser atropelado.
   -Você tem algum tipo de problema?! Seu... Lesado!- diz já se afastando e desistindo do que quer que fosse fazer em razão de tudo aquilo.
   Depois da moça se afastar, deu-se conta do acontecido, e riu por dentro, afinal, não é sempre que situações dinâmicas assim aparecem, principalmente envolvendo o trecho de asfalto mais maravilhoso da sua vida!
   Caminhou mais um pouco, já voltando a aquele estado de distração hipnótica que costuma entrar antes das duas da tarde. Para ele, o horário de funcionamento pleno é por volta das cinco, seis horas da tarde, depois de já ter digerido bem o almoço, mas sem estar com fome para o jantar, ainda é dia, mas não tão dia assim, nem noite o suficiente... Se bem que aquele mês não estava seguindo a regra padrão do inverno paulistano, que alcança a noite ás sete horas, na verdade, nada estava fazendo sentido... Deve ser interessante ser meteorologista em São Paulo, a cidade da garoa que estava há três meses sem cair uma gota sequer, é mais fácil achar padrão funcional nas previsões do futuro de jornais de metrô do que por aqui...  Porém percebeu que havia esquecido alguma coisa, que simplesmente não sabia o que era, pois a havia esquecido, e ficou por alguns momentos com aquela congestão emocional, se recuperando logo em seguida, pois era bastante acostumado ao absurdo e estava com muita preguiça para mandar tudo à merda e voltar ou se focar nisso.
   O fato de ter passado por esse mini-delírio travou sua caminhada por alguns momentos, é muito difícil criar ânimo para determinadas coisas, e é ainda mais difícil quando não se entende a relação de importância imediata que as pessoas empurram, o sentido daquilo tudo lhe incomodava um pouco, não o suficiente para fazer algo a respeito, mas com certeza o suficiente para não fazer nada a respeito, que é um tendência universal  para as pedras, árvores e animais sem metafísica, só fazer algo quando efetivamente é inevitável... Só o homem com essa psicose toda de “ compromissos” morre nos extremos, consegue fazer esforços hercúleos em situações inexpressivas... Como para passar de uma fase no vídeo-game ou para pular mais alto que o outro sujeito em uma competição, ao passo que consegue desistir e ficar parado em situações de morte iminente.
   Ficou divagando travado por um bom tempo, quando saiu um senhor (que provavelmente era o  dono da  livraria a qual ele havia parado bem na frente quando desconectou do mundo novamente )com um olhar de nítida curiosidade e cutucou seu ombro:
   -Você está bem garoto?
   -ahm? Ah, sim, sossegado!- disse tranqüilo, quebrando o transe.
   -É que você está de pé catatônico aqui a um tempo razoável... Fiquei meio confuso e resolvi perguntar...
   -Então, é que eu estava preso no dilema de fazer ou não fazer algo, só que são umas coisas muito pequenas, e geralmente quando eu entro nesses ciclos eu me desconecto... Mas tanto faz, cheguei a uma pergunta bacana que meio que resume tudo, já é meio caminho prá a resposta! Hahaha- riu de maneira simpática, e com um olhar conciso, estava mais próximo de alguma espécie de conclusão, e sabia disso.
   -E qual é a questão?
   -Como se convencer a estudar para uma prova de física quando você não vê necessidade, não tem medo e falta interesse... Aliás, como se convencer a fazer qualquer coisa sem ter ímpeto para?
   -Essa é a pergunta errada... - sorrindo.
   -E qual a certa então?
   -“Como convencer um niilista a estudar física?”
   -huuumm... é verdade. Como faz?
   -Boa pergunta... – diz o senhor acendendo um cigarro- Por isso eu fiz história, e não física!
  Dez segundos de silêncio seguidos por dois minutos de gargalhadas.
  O senhor tinha razão, um niilista jamais estudaria física, ou qualquer outro algo que não fosse da gama de interesse dos niilistas, que é uma gama bastante restrita... Um físico sempre pretende algo, nem que seja provar aquilo que os niilistas dizem, eles são mais engajados e interessados... Ele não, já era até um exagero, toda vez que começava a pensar em alguma coisa em efetivo, permanecia até que transformasse em algo que fosse realmente interessante para ele mesmo, ou até que algo ou alguém lhe permitisse sublimar ou esquecer o imbróglio todo...  Nesse momento resolveu tomar um café, um café forte e quente, então foi andando até a padaria do outro lado da rua.
   Balcão:
   -Quero um café, por favor. Ah... á propósito: que horas são?
   -Ok senhor, café rapidinho e no capricho!-respondeu virando pro relógio- e agora são... uma e cinco.
   -Obrigado! É que até hoje eu não aprendi a ver relógio analógico!
   -Tudo certo!
   -Então... Sabe que existem dois tipos de pessoas que tomam café?
   -Quais?
   -As que gostam muito do gosto, e as que precisam de energia para fazer algo importante...
   -E você, garoto, tem algum compromisso importante?
   -Mmm... Acho que não, dificilmente eu tenho...  Talvez alguma coisa relacionada ao meu cachorro e a um filme que eu quero assistir.
   -Beleza! Aqui o café... Açúcar ou adoçante?
   -Nada chefia! Puro... puríssimo!






       
O INCIDENTE MACARRÔNICO ~ BRUNO SANTANA
Quarta-feira, duas horas da manhã de um dia que fora mais do que comum. Todos na casa já estavam na cama: mãe, pai, irmãos, avó, cachorro, gatos e canários. Obviamente, os canários, gatos e cachorro não estavam em uma cama de fato, mas definições concretas não são exatamente o objetivo desse excerto da vida cotidianada. Aliás, definições, que por si só são concretas, nunca deveriam ser objetivo de nada.
       Enquanto ouvia uma música no computador, que não lhe caía muito bem, percebeu que ter feito apenas uma refeição até uma hora dessas não era lá muito inteligente. No entanto, não estava com fome; apesar dos roncos do estômago, não estava com fome. Na verdade, o que lhe perturbava não era o estômago cantor, mas não poder fazer som algum com o teclado do computador. Seu irmão trabalhador estava dormindo e não deveria ser acordado. Da última vez que teve uma epifania e teve de datilografar dez páginas de pensamento ouviu um sermão do pai sobre como quando não se quer procurar um emprego, também não se perturba quem já trabalha.
       No entanto, a estória era preciosa demais e, caso não fosse registrada, correria o risco de se perder para todo o sempre. Poderia muito bem ser um conto de vanguarda e avassalador. Caso fosse, seu barulho seria perdoado pelo irmão. Caso fosse ...
       Passara a tarde toda lendo Kierkegaard “O conceito da angústia”. O texto era difícil, denso e cheio de notas do tradutor. Como não entendia nada de Dinamarquês, tinha sempre que parar a leitura e recorrer às anotações. Cada página levava mais de três minutos para ser lida. Uma média nada aceitável para quem lera “Harry Potter e o Cálice de Fogo” em três dias aos catorze anos. No entanto, Kierkegaard tinha, pelo menos, uma tonelada a mais de estilo que J. K. Rowling e existencialismo cristão era tudo de que precisava agora. Estava em crise com Deus. Entrara na paranóia Nietzscheana de que Deus estava morto; quando conseguia aliviar, aliviava para a paranóia Camusiana de que Deus estava em silêncio absoluto.
       Assim, ler o proeminente, estiloso e culto Dinamarquês, versando sobre conceitos de Ética, Dogmática, Estética, Lógica e Psicologia, recorrendo sempre à Bíblia e nunca negando a existência divina era mais do que um alívio. Não que precisasse de Deus, mas ter algo em que se apoiar, principalmente nos dias de hoje, não era de se jogar fora. Além do mais, poderia aprender alguma coisa com a escrita de Kierkegaard, pois, nem a tradução porca do livro de bolso que comprara conseguia apagar o estilo fino do autor.
       Depois de moer o livro durante a tarde e passar a noite remoendo seu conteúdo enquanto ouvia post-punk, teve a brilhante ideia para o conto avassalador de vanguarda: recriaria o mito da criação segundo seu próprio ponto de vista. Adão surgiria em um belo condomínio fechado – chamado Éden por motivos óbvios - e descobriria os percalços da vida, suas tentações e tudo mais de uma forma um tanto quanto budista. Épico e sensacional o suficiente para justificar os barulhos do teclado.
       Continuava elaborando seu Adão enquanto tentava calar o ronco do estômago. Depois do terceiro, que veio acompanhado de uma descarga de ácido um tanto quanto incômoda decidiu comer um prato do macarrão que preparara no almoço. Vale a pena ressaltar que ele mesmo fizera o macarrão. Era o mesmo macarrão que fazia todos os dias há uma semana. Sim, tinha mãe. Por que ela não cozinhava para ele? ... pelo mesmo motivo pelo qual ele não podia datilografar de madrugada: pessoas sem emprego e motivação na sua casa perdiam privilégios. Ele não se importava, seu macarrão não era dos piores.
       O de hoje fora um apanhado de geladeira: calabresa, milho verde, ervilhas, carne moída, molho pronto e espaguete. Não ficara dos melhores nem dos piores; era comestível.
       Provavelmente, mais comestível às quatro da tarde quando  pronto e quente. Agora - duas da manhã - estava frio, grudendo, fedido e nojento. Fez uma pratada assim mesmo: o que precisava era calar o ronco do estômago e passar para o papel seu Adão.
       Passou pela geladeira, roubou um copo do suco de pêra do irmão e sentou-se à mesa para comer. No caminho, também apanhou o cinzeiro e o maço de cigarros. Acendeu um antes de começar a comer. Sim, era estranho fumar enquanto comia, mas fazia isso para dar ar de graça e estilo ao macarrão gelado. À essas horas podia fumar tranquilo na cozinha e era o que chamava de “Jantar com Godard”, provavelmente em alusão aos filmes franceses estranhos que assistia, onde personagens criavam o caminho para toda uma geração de hipsters morrerem de câncer.
       Quando chegou ao meio do cigarro colocou-o no cinzeiro e deu a primeira garfada no macarrão. O espagueti estava duro, mas não estava seco. Estava gelado, mas era um frieza de metal e enquanto deslizava pela boca, produzia um barulho complexo e nojento. Obviamente, lá pela terceira ou quarta garfada ele derrubou uma boa quantidade de molho na camiseta.
       Debruçado sobre a mesa, sorvendo o macarrão, com a luz da em sua cara e a fumaça produzindo a atmosfera, criara, sem dúvida, uma bela cena de decadência moderna. No entanto, os eventos externos, aqui, são os que menos interessam. O importante é o que o macarrão fazia com a mente do rapaz.
       Sempre deslizando, sempre molhado e sempre gelada a massaroca entrava. No entanto, quando descia, não era para o estômago que descia, pois este continuava a roncar ferozmente. De alguma maneira muito estranha, o macarrão estava entrando em sua mente.
       Entre a décima quinta e a vigésima garfada, já havia tanto macarrão em seu cérebro que bolotas de carne moída e pedaços de calabresa escapuliam pelas orelhas. Cada uma delas saía levando consigo pensamentos estranhíssimos. A primeira bolota levou consigo o falso conceito de que meditação resolve alguma coisa. O primeiro macarrão a escorrer desentupiu o lobo frontal e deixou clara a ideia de que Amor não existe: “Quisesse saber de amor que comesse canellonni!”. (Vale a pena ressaltar que macarrões, mesmo os feitos em território nacional, são descendentes irritadíssimos de italianos).
       Em meio a tantas conclusões emblemáticas o rapaz não conseguia parar de comer. Sorvia o macarrão e sorvia idéias. Dessa forma, entrava em simbiose com toda a farinha de trigo, molho de tomate, carne moída, calabresa, milho verde e ervilha de seu prato.
       Os milhos ajustaram várias idéias políticas e as ervilhas acertaram um entupimento que impedia toda a resolução matemática. Este macarrão, sem dúvida, era mais forte que todos os antidepressivos que tomara enquanto bom louco que era.
       Ao fim do prato, seu cérebro fervilhava. Como todo bom fumante sabe, depois de um prato que ocupa muito espaço no corpo, nada melhor pode ser feito que fumar um cigarro. Terminou aquele mesmo que estava no cinzeiro. Depois da última tragada, enquanto arrotava, o macarrão atingiu uma pressão absurda na câmara cerebral e começou a escapar por todos os buracos: olhos, ouvidos, narinas ...
       Em cerca de nove minutos, que é o tempo de cozimento do macarrão, sua cabeça explodiu. Sua face, crânio e tudo acima do pescoço era uma bagunça de molho, espaguete, calabresa, carne moída, milho verde e ervilhas.
       Com o estouro toda a casa acordou. Encontraram o menino encoberto de molho de tomate, comendo pedaços de macarrão crú, fervendo água, picando tomates e amassando bolinhos de carne para o próximo espaguete. O sorriso em seu rosto era fantasmagórico e epifânico. Enquanto fazia as pequenas almôndegas gritava em tom de profeta:
“Nietzsche estava errado! Deus não está morto!
Deus vive!
Aleluia!
Ele vive! Vive e por meio da sagrada pasta me colocou em sintonia com o universo!
O macarrão me mostrou que a vida nada mais é que molho, massa e carne!”

       Depois disso, foi encaminhado pelo irmão trabalhador para o manicômio. Dizem as lendas, que psicólogos, filósofos e mestres de cozinha o investigam até hoje.
       Pobrezinho, no meio de toda epifania esqueceu de escrever seu Adão e a estória se perdeu. Aquela sim era uma estória muito melhor que um incidente de macarrão.


Um comentário:

  1. ROOOOOLLING! Disse que ia entrar... Ainda não li, mas ai quando eu ler eu te falo o que achei. Sei lá, só pega ai meu email e me grita também.
    Nois, Escaroles

    ResponderExcluir